O instituto da estabilidade do servidor público não é novidade. Ele nasceu no Brasil em 1915 com a Lei nº 2.924/15, foi recepcionado pela Constituição de 1934 e desde então tem sido mantido em todas as Constituições. Antes da Constituição Federal de 1988 era direito conferido após 2 anos de efetivo exercício e o servidor só perderia o cargo por infração disciplinar grave apurada em processo administrativo disciplinar. A partir da Magna Carta de 1988 o instituto foi flexibilizado e a estabilidade passou a ser conferida após 3 anos ao servidor admitido em concurso público e aprovado em processo de avaliação especial de desempenho, sendo possível a sua perda nos casos de sentença judicial transitada em julgado, processo administrativo disciplinar, insuficiência de desempenho verificada por avaliação periódica e também nas situações de excesso de despesa com pessoal nos termos do art. 169, § 4º da CF, que prevê que o fim da estabilidade e a perda do cargo ocorrerão quando a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios adotarem as medidas de contenção de despesas com pessoal ativo e inativo - como a redução de 20% das despesas com cargos em comissão e funções de confiança e a exoneração dos não estáveis – e essas medidas não forem suficientes para adequar os gastos dentro dos limites estabelecidos na lei complementar nº. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).
A finalidade do instituto é assegurar aos ocupantes de cargos públicos a permanência no serviço público sem que precisem se submeter a ingerências de natureza política ou a pressões de grupos econômicos interessados em privilégios e favorecimentos. O intento é evitar que os servidores, no exercício das suas atribuições, sejam coagidos, de qualquer forma, a atuar em desacordo com o princípio da impessoalidade e em detrimento do interesse público, sendo incontroverso que servidores nomeados com base em critérios políticos para cargos de livre exoneração são extremamente vulneráveis a pressões, podendo agir, para o bem ou para o mal, a mando daqueles que tem poder para nomeá-los ou exonerá-los.
Pois é aí que reside o X da questão. Não se nega a necessidade de medidas que melhorem quadros de pessoal e resultem em serviços públicos de excelência. Também não se nega que o Brasil atravessa no atual momento uma severa crise fiscal, o que justificaria a aplicação do citado art. 169. Tudo isso é notório. O problema é que o texto constitucional confere aos servidores imunidades cujo objetivo primordial é o zelo e o cumprimento de deveres inerentes às funções públicas de modo a que haja um serviço público melhor prestado e cidadãos satisfeitos com seus direitos.
Nesses termos, negar a estabilidade ao servidor pode ser o mesmo que negar à população o cumprimento dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência tratados no art. 37 da Constituição e subjugar os interesses e direitos dos cidadãos a descomedimentos de detentores do Poder estatal. O que se perde podem não ser privilégios do servidor, mas o poder do cidadão de ser tratado com isonomia, impessoalidade, honestidade e de ter o direito político a uma administração eficiente.
Também pode ser a negativa das alternativas. Uma delas foi recentemente apontada pelo Supremo Tribunal Federal ao decidir a ADI 2238. Ao julgar dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal, o Tribunal entendeu que alternativamente à perda do cargo uma das soluções que podem ser adotas para minimizar crises fiscais é a redução da jornada de trabalho do servidor, desde que não haja a redução de vencimentos.
Então, por que o governo pretende o fim da estabilidade constitucional? Porque servidores protegidos pela estabilidade são acomodados e ineficientes e isso impede a Administração de se modernizar e produzir melhores resultados, ou porque quer reduzir quadros de pessoal e terceirizar o serviço público? Seja qual for o motivo estaremos diante de um retrocesso histórico já que a estabilidade, criada desde antes da Constituição de 1934, surgiu não para a proteção do servidor, mas da sociedade, que tem direito a uma Administração exercida sem desvios de finalidade. E porque juridicamente esta é uma iniciativa sem motivação posto que o mais acertado seria tratar do assunto, um direito constitucional, no plano infraconstitucional, regulamentando-o de maneira objetiva, aprofundada, com justiça e sem influencias políticas.
Pois é visando essa objetividade, e para que uma medida dessa envergadura não seja manipulada por governos de plantão, que entidades de classe têm lutado contra projetos que, sob o argumento de que o País atravessa uma crise fiscal, defendem que a estabilidade do servidor público precisa ser retirada da Constituição.
Ao contrário das motivações alardeadas, nos termos da Constituição e da legislação atual a estabilidade do servidor não impossibilita a demissão daqueles que não cumprem seus deveres e não evita avaliações de desempenho, que, se ruins, levarão à perda do cargo. Também não engessa gastos públicos impedindo reduções de despesas com pessoal que buscam o equilíbrio de contas públicas em momentos de severa crise fiscal. Opostamente, o servidor pode ser dispensado em situações de crise e o servidor estável que se mostre desqualificado pode, sim, perder o cargo. Mesmo após aprovação em estágio probatório voltado para a seleção de profissionais que atendam aos requisitos necessários ao bom desempenho do serviço público ele poderá passar por processo que legitime o seu desligamento.
A opinião pública, alimentada por informações manipuladas, passou a desenvolver um conceito equivocado sobre o princípio da estabilidade e a considera-lo prejudicial à sociedade sob o entendimento de que ele engessa a Administração e se presta a que servidores inaptos sejam mantidos no cargo mesmo não desempenhando adequadamente suas funções. É preciso alertar que, muito pelo contrário, a estabilidade do servidor não imobiliza a Administração. Independente dela, cargos, carreiras e estruturas podem ser declarados desnecessários e extintos ficando o servidor estável em disponibilidade até aproveitamento em outro cargo. Assim dispõe o art. 41, § 3º, da CF/88.
Também impõe-se advertir que a estabilidade vai muito além de servir a impedir perseguições políticas e pessoais a servidores e a evitar que órgãos públicos percam profissionais qualificados. Mais que isso, ela previne que junto ao poder oficial sejam instaladas forças paralelas de domínio e que são verdadeiros obstáculos à gestão pública comprometida com os direitos da sociedade.
Por fim, é preciso registrar que a Constituição não estabelece privilégios, muito menos para servidores públicos. Através do princípio da estabilidade o que a Constituição estabelece é a proteção do interesse público coletivo. A manutenção do Estado Democrático de Direito. A garantia da segurança jurídica. Projetos que acabam com a estabilidade constitucional precisam, portanto, ser combatidos. Não porque servidores querem mantê-la, mas porque cidadãos dela necessitam.
Fonte/Autor: Thelma Goulart