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A função da advocacia pública é fundamental à superação da crise democrática


Uma conversa com o professor Marcelo Neves sobre o papel dos advogados públicos na defesa do Estado Democrático de Direito
  27/07/2021



Jota

Marcelo Neves, jurista, professor titular de direito público da Universidade de Brasília e ex-advogado público, foi entrevistado pelo Observatório da Advocacia Pública. Autor de diversas obras sobre o constitucionalismo e os limites do Estado Democrático de Direito, Neves trabalha na finalização do seu novo livro, sobre a Transdemocracia, e, nesta entrevista, aponta para os atuais desafios institucionais da advocacia pública no Brasil para a superação de conhecidos problemas constitucionais do país.

Entre as principais formas de contribuição dos advogados públicos para a recondução democrática da atuação estatal, o autor destaca a sensibilidade da advocacia pública aos limites do sistema jurídico, de modo que, nos casos difíceis, não se criem limitações ao debate público e à democracia.

Prof. Marcelo Neves, poderia contar um pouco da sua experiência como advogado público?

Eu iniciei a carreira como advogado público muito jovem. Fiz o concurso com 23 anos e entrei na Procuradoria da Cidade do Recife, ainda durante a ditadura militar. Às vezes havia pressões políticas, principalmente, porque ainda havia prefeitos vinculados aos militares, mas procurei sempre zelar pela independência no exercício das atividades de consultoria. Sempre mantive muito rigor, aplicando com todo cuidado os parâmetros jurídicos, sem aceitar essas pressões. Acho que o fundamental na advocacia pública, seja como advocacia de estado ou advocacia de governo, tem que ser uma advocacia vinculada às instituições, não subordinada ao arbítrio concreto do eventual detentor de poder.

Como foi trabalhar numa Procuradoria Municipal de uma capital como Recife? Que questões poderia destacar sobre a relação entre a Procuradoria e a Prefeitura?

Como atuei na consultoria, houve momentos, evidentemente, de tensão entre a própria chefia do Executivo e os nossos pareceres. Eu me lembro de um projeto de interesse de vereadores governistas sobre nomes de lojas em que afirmei uma posição contrária ao que esperavam o Secretário e o Prefeito. Apesar de uma reação grande, prevaleceu a minha posição. Nós tínhamos esse papel de convencer, de persuadir o Poder Público de que era necessário seguir os parâmetros legais. Muitas vezes nossos pareceres eram bem aceitos. Então, num determinado momento, criou-se uma assessoria especial para emitir pareceres sob encomenda e, dessa forma, esvaziou-se um pouco a autonomia técnica do nosso trabalho.

Como era o desafio de conciliar a vida acadêmica com as atividades de procurador?

Foi muito difícil, embora tanto na prefeitura quanto na universidade, à época, eu atuasse em regime de tempo parcial. Entrei na Prefeitura em 1981 e na universidade em 1983. Eu tinha uma tendência acadêmica muito forte e o trabalho na prefeitura limitava o tempo e dificultava o meu trabalho acadêmico. Algumas vezes ajudou, porque certos estudos que fiz no plano municipal me ajudaram a compreender certas questões acadêmicas, mas no geral foi muito difícil para mim. Foi por isso que em 1996, já depois do doutorado, deixei definitivamente a Procuradoria Municipal do Recife para me dedicar exclusivamente à vida acadêmica. Minha experiência foi muito boa, aprendi muito. Mas houve um certo esvaziamento dos temas mais relevantes depois que se criou uma assessoria especial, que ficava com as questões mais sensíveis, enquanto nós, justamente os integrantes da consultoria vinculada à advocacia de estado, ficávamos com os temas rotineiros. Esse esvaziamento me deixou sem motivação, porque havia muita quantidade e pouca qualidade nas discussões dos casos. Assim, resolvi me afastar para me dedicar exclusivamente à vida acadêmica.

Como você enxerga as atividades dos advogados públicos no atual contexto institucional do Brasil?

É fundamental que a advocacia pública assuma o seu papel institucional, principalmente neste momento difícil, em que temos um governo com fortes traços autoritários, com uma postura de concentração de poder. Seja enquanto advocacia de estado ou de governo, a advocacia pública não pode se subordinar ao arbítrio, às vontades políticas do eventual detentor de poder. Atualmente é relevante que a Advocacia-Geral da União e a advocacia pública em geral assumam esse papel difícil de atuar em defesa do Estado Democrático de Direito no Brasil.

Poderia exemplificar como o desempenho de determinadas atividades dos advogados públicos pode contribuir para a superação desse estado de crise democrática, de crise do Estado de Direito hoje no Brasil?

Em todos aqueles casos em que não for adequada a posição do detentor de poder eventual (seja o Presidente da República, sejam os governadores, sejam os ministros ou secretários de estados e municípios, ou seja, em todos esses níveis), é fundamental que a advocacia pública, por meio da consultoria, atue de forma esclarecedora com base na Constituição e na lei. No contexto da atuação contenciosa, é preciso que o advogado público esclareça aos detentores do poder que, em muitos casos, certas ações judiciais são incabíveis em um formato puramente político, vinculado aos interesses pessoais do detentor do poder. Antes de qualquer ação que seja ajuizada contra alguém, ou contra uma entidade qualquer, cabe à advocacia do Estado esclarecer ao eventual detentor do poder se aquela ação tem algum sentido jurídico ou se é um mero ato de intimidação, de assédio judicial contra alguém. Principalmente nessa área do assédio judicial, a Advocacia-Geral da União tem um papel fundamental de evitar a sua utilização pelo poder dominante do momento para fins escusos, contra jornalistas, contra professores, contra funcionários públicos, contra integrantes diversos de movimentos sociais.

No livro Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais, você aponta para problemas da falta de consistência no processo de interpretação jurídica e constitucional com o advento do neoconstitucionalismo e o abuso do uso de princípios pelos juristas. De que forma a atuação da advocacia pública poderia minimizar esses problemas?

A questão dos princípios em determinado momento se tornou apenas um elemento retórico para facilitar o uso livre do direito, a instrumentalização do direito pelos juristas. É claro que os princípios são importantes, mas deve ficar claro que os princípios servem para abrir o sistema jurídico e fortificar a sua capacidade de aprendizado. O fechamento dos casos precisa de uma regra clara que estabeleça precedentes. Com o principialismo dominante a partir da década de 1990, houve um abuso e, dessa maneira, a inconsistência passou a ser um problema cada vez mais grave. A inconsistência jurídica no Judiciário e na prática do Ministério Público apontava para soluções ad hoc. Um caso típico é o caso da prisão em segunda instância, em que os próprios ministros do Supremo mudavam de posição a cada circunstância política determinada. A advocacia pública, ao atuar nessa área, precisa deixar claro que os princípios constitucionais e legais têm que estar vinculados a regras que levem à consistência jurídica e, nesse particular, esclarecer que o modelo de inconsistência jurídica leva a uma insegurança para os cidadãos e uma insegurança para o próprio Poder Público. Nesse sentido, a advocacia pública tem um papel de lutar por consistência. Consistência implica na continuidade do sistema, de forma que as transformações que venham a ocorrer vão exigir uma carga argumentativa altíssima, para que haja um overruling, como se diz na tradição americana. É preciso que haja argumentos novos, elementos também do caso que possibilitem essa transformação. Então, a advocacia pública tem um papel esclarecedor para o Judiciário e para os detentores eventuais de poder.

No contexto da interpretação de regras e princípios em casos difíceis na área da consultoria, como deveria o advogado público expressar sua preocupação com a democracia?

Nos casos difíceis o caminho mais correto da advocacia pública é aquele que não crie limitações ao debate público, que não crie limites à democracia. A postura em casos difíceis tem que ser aquela que reconheça os limites do sistema jurídico e procure atuar com sensibilidade para o sistema político. Dessa maneira, aliando a consistência com essa sensibilidade para o ambiente político do sistema jurídico, criam-se condições propícias para oferecer respostas politicamente adequadas, ou seja, respostas democraticamente adequadas. Essa é a minha perspectiva para a atuação da advocacia pública dentro de um Estado Democrático de Direito, que é Estado de Direito, mas é democrático. A dimensão jurídica é primária em um Estado de Direito. A dimensão política é a democracia. Se o Judiciário se expande excessivamente, em casos difíceis principalmente, para limitar a representatividade democrática e as lutas políticas democráticas, ele acaba fragilizando a democracia.

Na sua tese de doutorado você considerou que a operatividade do sistema jurídico do Brasil sofreria as consequências da insuficiência de diferenciação do direito, que estaria sujeito às constantes interferências dos códigos do poder e do dinheiro. Esse diagnóstico permanece atual?

Acho que hoje esse diagnóstico se fortificou. Teve um momento em que estava havendo um avanço no sentido da consolidação do Estado de Direito. E o que é o Estado de Direito? O Estado de Direito, de certa maneira, é marcado pela autonomia operacional do direito, que se reproduz com seus próprios critérios, seus próprios códigos de diferença, licitude/ilicitude. Além disso, o Direito é também um segundo código para o sistema político (para o poder) no Estado de Direito. No momento em que não há esses elementos, o que ocorre é uma subordinação difusa do direito a pactos e pressões diretas do poder, do dinheiro. Isso vai minando a capacidade do direito de se reproduzir consistentemente e, portanto, de dar respostas adequadas. Nesse sentido, ter consistência é um pressuposto para que a resposta seja socialmente adequada. Então, mantenho esse diagnóstico, em especial diante da situação mais recente de degradação constitucional pela qual estamos passando, principalmente a partir do Governo Bolsonaro, mas ainda antes, a partir do impeachment, um golpe parlamentar com apoio do Judiciário, que não tinha base jurídicas consistentes. A partir desse momento o jogo do poder passou a prevalecer destrutivamente em relação à linguagem do direito. Assim, estamos nessa situação muito mais grave do que aquela anterior, que eu dizia que era de constitucionalização simbólica. Na constitucionalização simbólica a referência constitucional, de certa maneira, podia ser um ponto de partida para a construção do Estado de Direito e da democracia.

Como poderiam os advogados públicos, no exercício do controle da legalidade dos atos da administração, colaborar com a mudança desse cenário?

O ponto fundamental é uma formação jurídica tecnicamente rigorosa, mas que, nessa construção da legalidade, não perde a compreensão da resposta que o direito tem que dar para uma sociedade amplamente desigualitária, amplamente excludente. A legalidade tem que ser interpretada a partir da Constituição e a Constituição tem um conjunto de normas e de direitos fundamentais, individuais, coletivos, mas também sociais, que possibilitam, dentro de um desenvolvimento constitucional, uma transformação da ordem social. É claro que isso é difícil, mas eu diria que, no caso brasileiro, se há uma legalidade constitucionalmente fundada avançando, desenvolvendo-se com o apoio da advocacia pública e outras instituições públicas, isso pode levar a uma transformação profunda, podendo até ser revolucionário, no sentido de que o modelo de sociedade se modifica. O contexto social brasileiro adequar-se à Constituição implicaria realmente em uma outra formação social, diversa da que temos agora. Portanto, a legalidade nesse sentido não é conservadora, no contexto de uma legalidade constitucional. Defendo a tese de que ela pode ser altamente transformadora. Não que a legalidade não possa converter-se no legalismo formalista e inconsequente, levando a retrocessos políticos e à manutenção do status quo. Estou falando de legalidade e não de um legalismo, ou seja, defendo uma legalidade fundada no caráter includente de nosso modelo constitucional. Essa legalidade a advocacia pública pode fortificar e, dessa maneira, contribuir não só para a transformação do sistema jurídico, mas para a transformação de todos os sistemas sociais no caso brasileiro.

Chegamos à nossa última pergunta: outro ponto muito presente nas suas obras e palestras é o conceito de corrupção sistêmica. Poderia esclarecê-lo e apresentar a sua visão sobre como o modo de funcionamento das nossas instituições reforça a sua tese?

O conceito de corrupção sistêmica é muito perigoso, pois pode ser deturpado e me vincular, por exemplo, a esse combate à corrupção irresponsável que vimos recentemente no Brasil. Não tem nada a ver com isso. Não é um conceito moralista, nem é um conceito jurídico penal. O termo “corrupção” poderia até ser evitado, nesse caso, para não criar maiores dificuldades de compreensão. O conceito trata de uma superposição de códigos de conduta de uma esfera, ou seja, de um sistema social sobre outro. Nesse contexto, temos que ter um código mais fraco de conduta e códigos mais fortes. Então, quando esse código fraco, no nosso caso o direito, não tem condições de reagir às pressões, aos bloqueios do poder e do dinheiro (e também de outras variáveis sociais), é evidente que se fala de uma corrupção sistêmica do direito. Não é necessário que haja um crime ou que haja algo que seja moralmente absurdo, mas sim que a estrutura social impeça que o campo dos direitos (do direito ou dos direitos) tenha força suficiente em face da lógica econômica, da lógica do poder. A racionalidade jurídica é super explorada pela racionalidade política e econômica, ficando subordinada não de forma estrutural como uma estrutura totalitária ou autoritária, mas de forma difusa dentro da própria estrutura social. É isso que é a concepção de corrupção sistêmica. E, nesse sentido, corrupção sistêmica ocorreu com a Operação Lava Jato. Houve ali uma corrupção sistêmica clara: o próprio direito atuando subordinado primariamente (não secundariamente) pelo código do poder. E aí temos realmente uma noção mais abrangente do que seja corrupção sistêmica. Não tem nada a ver com essa linguagem utilizada contra a corrupção penal, que também é grave no Brasil, mas isso é um aspecto secundário no conceito de corrupção sistêmica.

Estamos chegando ao final da nossa entrevista. Além de agradecer a sua atenção e disponibilidade, gostaria de saber se quer acrescentar algo sobre o que não foi perguntado.

Foi um prazer ter participado dessa entrevista. A Associação das Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia – APD tem um papel muito importante nesse momento difícil pelo qual passa o Brasil. Vocês da Associação tiveram, têm e terão um papel importante para que superemos esse estado de coisas com fortes características autoritárias no qual nos encontramos atualmente.





    

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