Meire Lúcia Gomes Monteiro(*)
Toda a sociedade precisa debater o chamado `'déficit'' da Previdência Social. É fundamental, neste momento, alertar,
especialmente os trabalhadores, por serem os legítimos interessados e detentores dos direitos garantidos pelo
patrimônio da Previdência, das ameaças ao Sistema da Seguridade Social garantido pelo Constituição Federal.
O déficit da Previdência do Regime Geral (RGPS), além de ser tecnicamente errado, pois os governos vêm
desconsiderando os repasses constitucionais do Orçamento da Seguridade Social (inclusive a parcela de 0,10% da
CPMF destinada ao RGPS), deve ser auditado pelas instituições competentes (TCU, Judiciário, Ministério Público,
Sindicatos de trabalhadores e patronais, entre outros), já que o Fluxo de Caixa do INSS como um todo demonstra o
contrário.
O propalado déficit tem sido muito badalado pelos últimos governos e pela mídia sem o devido esclarecimento de
que os recursos do RGPS, principalmente as contribuições sobre a folha salarial, e num ambiente de queda do
mercado formal de trabalho, não são mais capazes de financiar os benefícios assistenciais e rurais, e que deveriam
ser pagos pelas fontes de custeio da Seguridade Social. Esses benefícios se configuram em um dos poucos, senão o
único programa de transferência de renda do Brasil. Do ponto de vista do conceito operacional (contábil) do Fluxo de
Caixa do INSS, ou seja, total de recebimentos menos total de pagamentos, há superávit.
Desse modo, o chamado déficit previdenciário é resultante do critério adotado pelos últimos governos para divulgar o
balanço da Seguridade Social que utiliza um cálculo simplista - e de caráter estritamente político - com o objetivo de
descaracterizar o sentido público e universal da Previdência Social.
Nós, procuradores da Previdência, temos o dever de advertir a sociedade sobre as graves conseqüências
decorrentes da recente Medida Provisória 258/2005, que dispõe sobre a Administração Tributária Federal, criando a
denominada `'Super Receita'' ou Receita Federal do Brasil, que sobre o pretexto de conferir uma nova sistemática
nas formas de recuperação de créditos tributários do Estado brasileiro, instituiu, na verdade, o caos na Administração
Tributária Nacional, colocando em xeque o destino de milhões de brasileiros.
A proposta de caixa único a partir da criação da chamada `'Super Receita'' não garante aumento da arrecadação,
permite ampliar os desvios de recursos da Seguridade Social (Saúde, Previdência e Assistência Social) para fazer
frente ao total de despesas para o ajuste fiscal. É temerária, pois compromete os programas sociais, principalmente
nas áreas da saúde, da previdência e da assistência social, bem como o maior programa de distribuição de renda do
país realizada por intermédio do pagamento de benefícios para 23,1 milhões de brasileiros. Além disso, compromete
os recursos da contribuição social do salário-educação e confronta artigos que garantem direitos legítimos dos
trabalhadores, sejam eles rurais, urbanos e do serviço público. Coloca a Previdência Social à mercê dos governos
sem a intervenção dos trabalhadores, dos empregadores e dos aposentados.
A transferência ampla e geral de competência do INSS para a União desvirtua a solução encontrada pela
Constituição de 1988 para `'blindar'' a Seguridade, garantir e ampliar direitos sociais e, também, coibir os abusos e a
corrupção, com a criação de espécies tributárias específicas para custeio dos benefícios previdenciários, como as
contribuições sociais do art. 195 e a adoção de medidas administrativas e reformas estruturais que deram autonomia,
descentralização (politicamente integrada) e auto-fiscalização, pela participação dos grupos interessados em sua
gestão (gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do governo
nos órgãos colegiados).
A atividade de fiscalização tributária, por envolver expressivos aspectos patrimoniais, é altamente sensível a reações
adversas dos contribuintes e movimentos especulativos, não sendo conveniente que haja um vácuo jurídico e
institucional que de alguma forma coloque em dúvida para o contribuinte a responsabilidade pela execução das
atividades de arrecadação, fiscalização, recuperação de créditos e representação, judicial e extrajudicial, resultantes
daquela atividade. Os prejuízos decorrentes dessa lacuna podem gerar insegurança jurídica de valor inestimável,
motivo pelo qual se entende que há razão suficiente para respaldar a relevância da instituição de norma de aplicação
imediata.
É de se esperar que alterações desse porte sejam precedidas de um debate amplo com toda a sociedade e que
sejam implantadas por meio do instrumento próprio, que é a Lei .
A Receita Federal do Brasil, ao invés de descentralizar, simboliza uma extremada e inconstitucional opção pelo
autoritarismo do poder central, transformando a continuidade do sistema previdenciário em um favor cotidiano dos
dirigentes do novo órgão, de cuja boa vontade passará a depender inclusive o pagamento de benefícios aos
pensionistas e aos aposentados, o que pode inviabilizar o sistema público dos benefícios previdenciários.
A criação da `'Super Receita'' é maléfica para a Previdência Social pública e para o sistema de Seguridade Social
como um todo: unifica o caixa da Previdência e da Receita Federal, sujeita as contribuições previdenciárias à DRU,
confunde as duas procuradorias e os contribuintes, transfere parte do patrimônio do INSS para o Ministério da
Fazenda, fere a lei de responsabilidade fiscal e, finalmente, o Ministério da Fazenda deterá o domínio completo dos
orçamentos fiscal e da Seguridade Social, podendo manipulá-los de acordo com seus interesses políticos e
financeiros, o que significa mais centralização e poder para o Ministério da Fazenda e menos autonomia para as
políticas sociais.
(*)Meire Lúcia, Presidente da Associação Nacional dos Procuradores da Previdência Social. Artigo publicado
no JORNAL DO BRASIL, em 25 de agosto de 2005.