Conjur
Por: Marcus Vinicius Furtado Coêlho
20 de setembro de 2020
"O advogado é indispensável à administração da justiça", é assim que a Carta Cidadã inaugura a seção que dispõe sobre a advocacia (artigo 133). A Constituição reconhece expressamente que o exercício da advocacia é fundamental à prestação jurisdicional. Nessa perspectiva, tanto a advocacia liberal como a advocacia pública exercem atividades essenciais para a concretização da justiça.
A essência da advocacia é a defesa do direito e dos interesses de seus constituintes, o que deve ser feito com lealdade, eficiência e com base no Direito, para que a própria Justiça exista enquanto instituição. Sem a advocacia, não há direito de defesa ou contraditório, tampouco é possível falar-se em devido processo legal. Por essa razão, a Constituição da República, logo após versar sobre a organização do Poder Judiciário, dispõe sobre a indispensabilidade da advocacia e a sua relevância para a realização da justiça.
Em que pese a advocacia pública possuir peculiaridades no tocante à forma de investidura de seus membros e a sua organização, não se pode concluir que os advogados públicos estariam excluídos do regime geral da advocacia, de suas garantias e prerrogativas, sendo certo afirmar que se submetem também ao quanto previsto no artigo 133 da CF/88. Isso porque a Constituição assegurou à advocacia como um todo — independentemente de se tratar de causídicos públicos ou privados — igual status de essencialidade. Como bem elucida o ministro Ayres Britto em parecer, "o advogado público não deixa de ser advogado pelo fato de se investir em cargo público de provimento efetivo. Acumula os dois títulos de legitimação funcional, no sentido de que a formação de advogado é condição para a posse no cargo público[2]".
Sob essa perspectiva de isonomia entre os advogados públicos e particulares, o Supremo Tribunal Federal (STF), no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.652/DF, consignou que os advogados públicos estão “submetidos à legislação específica que regula tal exercício (...) nem por isso, entretanto, deixam de gozar das prerrogativas, direitos e deveres dos advogados, estando sujeitos à disciplina própria da profissão” [3]. Dentre esses direitos e prerrogativas, estão os honorários de sucumbência previstos no artigo 23 do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil — OAB (Lei nº 8.906/1994)[4].
A leitura do texto constitucional não permite qualquer interpretação apta a subsidiar a noção de que os advogados públicos estejam apartados da advocacia em geral, no que toca à percepção dos honorários sucumbenciais. Se por um lado a Constituição é categórica ao vedar a percepção de honorários por parte de membros do Ministério Público[5], inexiste, por outro lado, disposição similar para advogados públicos.
Nesse sentido, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil editou a Súmula nº 8, dispondo que "os honorários constituem direito autônomo do advogado, seja ele público ou privado. A apropriação dos valores pagos a título de honorários sucumbenciais como se fosse verba pública pelos Entes Federados configura apropriação indevida". Nesse mesmo contexto harmônico de reconhecimento aos advogados públicos da titularidade dos honorários de sucumbência, o CPC/2015 e a Lei nº 13.327/2016 consagraram em seus textos o aludido entendimento.
Não obstante, em dezembro de 2018, a Procuradoria-Geral da República (PGR) ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade — a ADI nº 6.053 — em face de diversas normas que asseguram o pagamento dos honorários sucumbenciais aos advogados públicos[6]. No feito a PGR argumentava que os honorários de sucumbência pagos aos advogados públicos possuiriam natureza de receita pública e, por essa razão, os dispositivos impugnados violariam os princípios republicano, da isonomia, da moralidade, da supremacia do interesse público e da razoabilidade, além de inobservar o teto remuneratório previsto na Constituição. Nesse sentido, sustentava, ainda, que o pagamento da referida verba à advocacia pública seria incompatível com regime de subsídios estabelecido pela CF/1988.
Contudo, ressalta-se que os honorários de sucumbência se relacionam à causalidade, sendo que a obrigação de pagar é da parte derrotada na demanda. Nesse sentido versa o artigo 85 do CPC/2015: "a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor". Ou seja, o pagamento dos honorários sucumbenciais fixados nas causas em que os advogados públicos são vencedores não incorrem em violação ao regime de subsídios, pois referida verba possui natureza privada, pertence aos advogados e não integra o patrimônio da parte defendida pelo causídico. Em outras palavras, quem deve pagar a verba sucumbencial é a parte que não tem qualquer vínculo — empregatício, contratual ou estatutário — com o patrono vencedor na causa.
No julgamento dessa ADI nº 6.053, o Supremo entendeu que o fato de os honorários sucumbenciais não serem devidos por alguém que se tenha beneficiado dos respectivos serviços profissionais não é suficiente para, por si só, descaracterizar a natureza remuneratória dessa verba. Ainda assim, o Tribunal reconheceu a constitucionalidade do recebimento de honorários advocatícios sucumbenciais por parte dos patronos públicos na forma da lei.
Nem todo recurso que ingressa nos cofres públicos tem natureza de receita pública. "Receita é considerada a entrada ou ingresso definitivo de dinheiro nos cofres públicos"[7] e o eventual pagamento de honorários sucumbenciais através do caixa da Administração Pública não se adequa a essa categoria, pois trata-se de ingressos provisórios, sendo que a operacionalização da distribuição, transferência, fiscalização e controle do montante arrecadado já estão previstos em lei.
Logo, os honorários sucumbenciais não são incorporados ao Erário, tal como as espécies tributárias ou as condenações em favor da Fazenda Pública. São verbas alimentares, autônomas à condenação, de titularidade exclusiva do patrono. Quando muito, o ente público é mero intermediário na administração de tais verbas, devendo sempre repassá-las aos causídicos públicos.
O próprio vocábulo "honorário", do latim honorarius, remete à ideia de prestar honrarias ao patrono vencedor[8]. Logo, evidencia-se que os honorários de sucumbência não se tratam de vantagens pecuniárias funcionais e convencionais, trata-se, em verdade, de estímulo profissional que será estabelecido de acordo com a legislação específica, sendo variável caso a caso. Não há dispêndio de dinheiro público no pagamento de honorários sucumbenciais ao advogado público, seu pagamento cabe à parte que, sem sucesso, decidiu litigar contra o Estado.
A advocacia pública está diretamente vinculada ao princípio da eficiência, consagrado no caput do artigo 37 da Constituição Federal, e essa verba honorária advém justamente da natureza qualitativa dos serviços efetivamente prestados pela advocacia. Nesse ponto, cita-se o voto do Ministro Alexandre de Moraes ao mencionar que "no modelo de remuneração por performance, em que se baseia a sistemática dos honorários advocatícios (modelo este inclusive reconhecido como uma boa prática pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico — OCDE), quanto mais exitosa a atuação dos advogados públicos, mais se beneficia a Fazenda Pública e, por consequência, toda a coletividade"[9].
Portanto, inexiste violação ao princípio republicano e aos demais princípios constitucionais que regem a Administração Pública, consoante caput do artigo 37 da CF/1988. Aliado à moralidade, que é a base de toda formação ética dos advogados, o princípio da eficiência deve também ser considerado, enquanto representação da passagem de um modelo estatal burocrático e vetusto para um modelo estatal gerencial, tendência que já levou diversos órgãos e entidades administrativas a criarem incentivos premiais aos seus agentes. Dessa forma, com a vantagem de que não haverá qualquer oneração aos cofres públicos, os honorários de sucumbência estão intimamente conectados ao princípio da eficiência, consagrado desde a Emenda Constitucional nº 19/1998.
Além de reconhecer a constitucionalidade do pagamento de honorários sucumbenciais aos advogados públicos, o Supremo enfatizou que "o pedido da PGR de mera supressão da verba sucumbencial dos advogados públicos, sem qualquer estabelecimento de uma regra de transição e de compensação remuneratória, para a parcela única do subsídio, acarretaria inconstitucional redutibilidade nos vencimentos finais dos procuradores"[10]. E, quanto a isso, não se trata de uma discussão sobre direito adquirido e sim sobre a consagração da garantia de irredutibilidade.
Com exceção do ministro Marco Aurélio, relator do caso, que votou pelo provimento parcial da ADI, conferindo interpretação conforme à Constituição ao artigo 23 da Lei nº 8.906/1994 para restringir o alcance da norma apenas aos profissionais com atuação no âmbito privado, os demais ministros acompanharam a divergência de Alexandre de Moraes, de modo a assentar a constitucionalidade dos honorários de sucumbência para os advogados públicos, observando-se, porém, o limite remuneratório do teto constitucional, previsto no artigo 37, XI.
Desta feita, o montante recebido pelos advogados públicos somado às demais verbas remuneratórias não deve exceder o subsídio dos Ministros do STF, ao fundamento de que os honorários sucumbenciais configuram retribuição à atividade pública desempenhada e, em razão desta, são recebidos no exercício do cargo público. Portanto, o recebimento da parcela específica decorrente de verbas honorárias de sucumbência judicial, próprias do ofício da advocacia, é direito também do advogado público, contudo ficam estas submetidas ao teto constitucional.
No julgamento da ADI nº 6.053, o Supremo Tribunal Federal asseverou que os honorários advocatícios pertencem aos advogados por ausência de previsão diversa na Constituição e por disposição expressa da Lei Estatutária da Advocacia, do Código de Processo Civil de 2015, bem como da lei que veio a regulamentar o recebimento desses honorários pela Advocacia Pública. Não distinção, quanto a este ponto, entre os advogados públicos e privados.
Como se vê, o debate acerca da percepção dos honorários sucumbenciais pelos advogados públicos não se relaciona à alegação enviesada de "penduricalhos aos cofres públicos", essa discussão é ampla e envolve a garantia de princípios constitucionais, a essencialidade e a eficiência no que tange à advocacia pública. A decisão do Supremo Tribunal proferida nos autos da ADI nº 6.053 é, certamente, uma conquista histórica da classe, ao reconhecer a igual dignidade e essencialidade dos advogados públicos e privados e, assim, assegurar a percepção dos honorários de sucumbência àqueles. O múnus da advocacia garante não apenas o acesso a direitos e à justiça, como também serve à realização, em última instância, do próprio Estado Democrático de Direito.
[2] Parecer proferido após consulta da União dos Advogados Públicos Federais do Brasil — Unafe com vistas a subsidiar a atuação parlamentar no Senado Federal pela manutenção dos honorários advocatícios no novo CPC.
[3] ADI nº 2.652/DF. Relator o ministro Maurício Corrêa. Tribunal Pleno. Dj: 08/05/2003. Págs. 5 e 6.
[4] Art. 23. Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor.
[5] CF/1988. “Art. 128. Art. 128. O Ministério Público abrange: (...)§ 5º Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros: (...) II - as seguintes vedações: a) receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais; (...)”
[6] A ação impugnava o artigo 23 do Estatuto da Advocacia e da OAB, do §19 do artigo 85 do Código de Processo Civil/2015, e os artigos 27 e 29 a 36 da Lei nº 13.327/2016 que, entre outras providências, dispõe sobre honorários advocatícios sucumbenciais das causas em que forem parte a União, suas autarquias e fundações.
[7] CARNEIRO, Claudio. Curso de Direito Tributário e Financeiro, 7. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 58.
[8] WOTHER, Ellen Lindermann. As origens dos Honorários Advocatícios. Disponível em: <http://ellenwother.blogspot.com/2012/08/as-origens-dos-honorarios-advocaticios.html>. Acessado em 08.09.2020.
[9] Pág. 50.
[10] Pág. 52.