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OPINIÃO

A garantia da paridade após a reforma da Previdência (EC 103/2019)

  28/01/2021



Conjur*

Existem regras previdenciárias destinadas a preservar o valor das aposentadorias e pensões no futuro. Por vezes, essas garantias são chamadas de princípios ou direitos, mas a rigor destinam-se apenas a assegurar no tempo o valor real de benefícios adquiridos na relação previdenciária e não a instituir, por si, qualquer benefício. É o caso da paridade previdenciária, parâmetro de revisão das aposentadorias e pensões alternativo à revisão de benefícios por índices de medição da inflação. Trata-se de imposição acessória complexa, com riscos associados e ocultos para os dois polos da relação previdenciária (Estado/servidores públicos efetivos). Explorar resumidamente o alcance dessa garantia, os seus riscos inerentes e os seus destinatários após a Emenda Constitucional 103/2019 é o objetivo das linhas a seguir.

Paridade: garantia material
A paridade previdenciária é garantia constitucional material. Não estabelece nem requer do legislador procedimento, processo ou providência institucional específica. Fixa, na forma do antigo §4º do art. 40 da Constituição Federal, o dever de proceder à revisão dos proventos e pensões de servidores efetivos, na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modifique a remuneração dos servidores em atividade, estendendo-se ainda aos aposentados e aos pensionistas quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria.

A garantia da paridade visa inibir e coibir a prática de concessão de benefícios exclusivamente aos servidores em atividade, seja diretamente (criação de novas vantagens ou revisão de anteriores) seja indiretamente (mediante reenquadramentos, reformulação, transformação, fusão e cisão de carreiras), com alheamento e desconsideração da situação do servidor aposentado. A paridade vincula a despesa de ativos e inativos de modo estreito e direto.

Paridade e integralidade complementam-se: a paridade permite prolongar no tempo o direito à integralidade - fórmula de cálculo do provento ou da pensão que adota o último valor bruto da remuneração ou subsídio do servidor ativo na fixação do benefício de inatividade. A garantia da paridade (igualdade revisional) entre proventos de inatividade e vencimentos da atividade confere permanência ao direito à integralidade. Sem a paridade, o direito à integralidade cessaria no próprio momento da concessão do benefício previdenciário. Sem a integralidade, a paridade importaria em igualdade percentual e não em igualdade de valores na revisão de benefícios, pois não haveria incidência de percentuais sobre as mesmas bases.

Apenas servidores, civis e militares, titulares de cargo público efetivo, podem manejar a garantia da paridade. Não existe semelhante critério de revisão no Regime Geral de Previdência Social.

 Paridade: garantia sujeita à política de pessoal
No entanto, na dinâmica do direito, a aplicação desses conceitos nunca foi singela. Pode-se afirmar, sem receio de erro, que nem a integralidade nem a paridade foram e são aplicadas de forma plena e admitem exceções importantes, que culminam por conceder ao Poder Público perigosa flexibilidade na composição e revisão do valor final dos proventos de titulares de cargo efetivo. A integralidade e a paridade plenas são, antes de um dado de realidade concreta, um mito ou, de forma realista, uma garantia sujeita à política de pessoal do setor público.

A garantia da paridade assegura a extensão aos inativos de benefícios concedidos aos servidores em atividade, porém a jurisprudência ressalva desse dever de extensão (1) as vantagens de caráter pessoal, (2) as vantagens indenizatórias e (3) as decorrentes de atividades específicas, de natureza eventual, incompatíveis com a situação do aposentado ou pensionista. Essas exceções podem diferenciar legitimamente não apenas o quanto percebido por ativos e inativos, mas igualmente valores de retribuição de agentes em atividade. Exemplo: gratificação de atuação em emergência, deferida a médicos públicos plantonistas, deve ser paga unicamente a médicos durante o período em que respondem efetivamente em emergências de postos de saúde e hospitais, não sendo devida a agentes em atividade diversa, ausente os pressupostos fáticos exigidos para o gozo da vantagem (v.g., médico em exercício de funções de direção) nem aos aposentados, salvo hipótese de “estabilidade econômica”. A extensão é obrigatória apenas quando a vantagem retributiva criada ou elevada exibe caráter genérico.

É dizer: todas as vantagens que revelem caráter geral, por serem aplicáveis indistintamente aos agentes em atividade da carreira, com independência do exercício efetivo de alguma atividade especial ou outra circunstância pessoal, à luz da garantia da paridade devem ser estendidas imediatamente a todos os inativos correspondentes, sem necessidade de lei específica, em face do que dispunha o §4º do art. 40 da Lei Fundamental, na redação original, ou na redação do §8º, do art. 40, segundo a redação aprovada pela Emenda Constitucional nº. 20/1998. Mas se vantagens forem realmente vinculadas a atividades concretas (pro labore faciendo), específicas, que diferenciam segmentos dentro da própria categoria dos agentes ativos pelo efetivo desempenho de função ou tarefa, podem ser recusadas aos inativos, por inextensíveis ou por não atenderem ao pressuposto fático que as faz incidir. No caso de gratificações de desempenho, após o primeiro ciclo genérico de avaliação, pode haver descasamento entre a retribuição do ativo e inativo, sem ofensa ao princípio da irredutibilidade (STF, Repercussão Geral, Tema 983).

Em outro dizer: embora dificulte abusos, a paridade não impede o descasamento entre a retribuição do servidor ativo e o benefício do inativo, nem inibe a criatividade do legislador em matéria de retribuição, sobretudo na modalidade remuneração (não subsídio). Porém, mais grave ainda: pode importar em congelamento de proventos e pensões, com perda do poder de compra do agente inativo, quando ocorra ausência de correção de vencimentos ou revisões abaixo da inflação no serviço ativo em determinado período. O aposentado vincula-se à política de pessoal em atividade de forma solidária, isto é, compartilha as alegrias e infortúnios da revisão dos vencimentos e subsídios dos servidores em atividade. 

Esse fato provoca fenômenos interessantes. Um dos mais curiosos é o incentivo à participação de aposentados na deflagração de greves no setor público. Em 2002 publiquei na Folha de São Paulo artigo com o título “Aposentados e... em greve”, no qual já identificava o problema e interrogava:

"Os servidores públicos ativos em greve, se titulares de cargo público, não fazem jus à retribuição durante o movimento grevista. Servidores em estágio probatório deixam de computar esse período no processo de aquisição do direito à estabilidade. Porém, os servidores aposentados em cargos públicos efetivos com direito à paridade nada perdem com movimentos paredistas prolongados. Votam sistematicamente nas assembleias pela radicalização dos movimentos de paralisação. É legítimo que participem de todas as deliberações e integrem o mesmo sindicato? Aposentados do regime próprio dos cargos públicos apenas podem retornar ao serviço efetivo do Estado mediante aprovação em novo concurso público. Não é paradoxal que deliberem sobre o retorno à atividade? Sem riscos ou perdas com a ação paredista, possuem legitimidade para opinar sobre a continuidade de greves? Ao comparecerem em grande número a assembleias sindicais, durante greve, podem formar maiorias e vincular os ativos?" 

Para o Poder Público, a paridade é risco e problema, pois dificulta a concessão de reajustes para segmentos do setor público em face do elevado número de aposentados (aumenta o impacto) e torna difícil (senão impossível) a previsibilidade da despesa previdenciária. O valor dos proventos e das pensões permanece sujeito a oscilações da política de pessoal do Poder Público, mas essas oscilações ocorrem ao longo do tempo e pode importar em elevação dos valores de proventos e pensões acima da reposição da inflação (como entre 2003 e 2014) ou abaixo da reposição da inflação (como, em regra, ocorre desde 2017).

Paridade: garantia em extinção
A extinção da integralidade e da paridade figura entre as alterações mais relevantes do regime previdenciário dos agentes públicos efetivos nos últimos anos. Como regra permanente, a paridade e a integralidade foram extintas pela EC 41/2003. A regra permanente para os servidores civis desde então segue o critério de reajustamento dos benefícios mediante aplicação de índice de inflação (atualmente, o INPC - Índice Nacional de Preços ao Consumidor), de modo a preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real (art. 40, §8º, CF). 

A extinção da paridade ressalvou a situação dos agentes que ingressaram antes da EC 20/1998 e antes da EC 41/2003, permitindo a sua invocação futura, observadas regras de transição previstas nas EC 20/1998, EC 41/2003, EC 47/2005 e EC 103/2019. A situação jurídica de transição pode ainda variar conforme o estágio e a completude da regulamentação da EC 103/2019 em Estados, no DF e nos Municípios.

Paridade: garantia em transição após a EC 103/2019
Os servidores efetivos que ingressaram antes da EC 20, isto é, antes de 16/12/2003, encontram no art. 3º da EC 47/2005 norma especial de transição, que assegura paridade e integralidade na inativação e para a pensão decorrente (§único do art. 3º). A EC 103/2019 revogou essa disposição para os servidores da União, mas a manteve vigente nos Estados e Municípios até que “lei de iniciativa privativa do respectivo Poder Executivo” referende de modo integral a revogação dessa norma e das disposições de transição previstas nos arts. 9º, 13 e 15 da EC 20, de 15/12/1998 e nos arts. 2º, 6º e 6º-A da EC 41, de 19/12/2003. Enquanto não há essa revogação expressa na lei fundamental dos entes federativos aludidos, uma vez que essas normas eram de reprodução obrigatória na Federação e possuíam status constitucional antes da EC103/2019, esses agentes mais antigos podem invocar o art. 3º, da EC 47/2005, desde que preencham as seguintes condições de elegibilidade: 35 anos de contribuição, se homem, ou 30 de contribuição, se mulher; 25 anos de efetivo exercício no serviço público; 60 anos de idade, se homem; 55 anos de idade, se mulher; 15 anos na carreira e 5 anos no cargo em que se der a aposentadoria. Poderão também, na forma do inciso III do mesmo artigo, reduzir a idade mínima referida na proporção de um ano por cada ano de contribuição que exceder o período de contribuição exigido (35 anos/30 anos).  

De igual modo, nos Estados e Municípios que não tenham referendado integralmente a revogação das disposições transitórias aludidas, será possível aos servidores civis com ingresso após a 16/12/2003 e empossados até 31/12/2003 (EC41/2003), invocar a garantia da paridade, porém com renúncia à integralidade em razão das reduções previstas no §1º do art. 2º da EC 41/2003 (proporcional a cada ano antecipado em face da norma permanente, o que pode alcançar 35% de redução).

Por fim, para os servidores federais, a própria EC 103/2019 estabelece duas normas de transição que ainda asseguram a paridade e integralidade para os servidores com ingresso no serviço público até 31/12/2003 (EC 41) e não tenham optado pelo novo regime previdenciário com limitação ao teto do RGPS e realizado a adesão à previdência complementar: art. 4º, caput, §6º, I, e §7º, I, e art. 20, caput e inciso I.

Pela primeira disposição, são exigíveis as seguintes condições: 62 anos de idade, se mulher; 65 anos de idade, se homem (se professor do ensino infantil, fundamental e médio, 57 anos de idade, se mulher; 60 anos de idade, se homem); 30 anos de contribuição, se mulher; 35 anos de contribuição, se homem (se professor, 25 anos de contribuição, se mulher, 30 anos de contribuição, se homem); 20 anos de efetivo exercício no serviço público para ambos os sexos; somatório de idade e do tempo de contribuição, incluídas frações, equivalente a 86 (oitenta e seis) pontos, se mulher, e 96 (noventa e seis) pontos, se homem, com acréscimo a partir de 1º de janeiro de 2020 de um ponto a cada ano até atingir o limite de 100 (cem) pontos, se mulher, e de 105 (cento e cinco) pontos, se homem. Para professores, a soma de pontos inicia com 81 (oitenta e um) pontos, se mulher, e 91 (noventa e um) pontos, se homem, aos quais serão acrescidos, a partir de 1º de janeiro de 2020, 1 (um) ponto a cada ano, até atingir o limite de 92 (noventa e dois) pontos, se mulher, e de 100 (cem) pontos, se homem.

Nos termos da segunda disposição transitória (art. 20, caput e inciso I, da EC103), são condições exigíveis: 57 anos de idade, se mulher; 60 anos de idade, se homem; 30 anos de contribuição, se mulher; 35 anos de contribuição, se homem; 20 anos de efetivo serviço público e 5 anos no cargo efetivo em que se der a aposentadoria; acrescido do período adicional de contribuição (“pedágio”) equivalente a 100% do tempo que, na data de entrada em vigor da EC103, faltaria para atingir o tempo mínimo de contribuição exigido. Há redução de 5 anos na idade e no tempo de contribuição para o professor que comprovar exclusivamente tempo de efetivo magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio. Essa norma não contempla crescimento anual de pontos (soma da idade com tempo de contribuição). Por igual, essa regra aplica-se ao servidor efetivo federal com ingresso até 31/12/2003 e que não tenha realizado a opção pela previdência complementar. Os pensionistas desses aposentados, nas duas disposições da EC103, não preservam o direito à integralidade e paridade e seguem as regras vigentes por ocasião do falecimento do segurado instituidor (princípio tempus regit actum).

Há situações especiais que aqui não são abordadas por falta de espaço, como a situação dos policiais federais (com ingresso antes da EC 103 e regra de transição específica) e dos servidores públicos com direito a aposentadoria especial por exposição a agentes prejudiciais à saúde. Deixa-se de referir também a situação dos militares, cuja reforma impacta as despesas públicas de forma crescente e que mantiveram, em termos gerais e permanentes, o direito à integralidade e paridade.

O futuro dirá se a paridade permanece uma garantia ou terá se convertido em uma ilusão. As restrições orçamentárias definirão os limites da política remuneratória do setor público nos próximos anos e podem sinalizar que se apostou no “auto-engano” (EDUARDO GIANNETTI). E, talvez, não muito longe, seja preciso dizer adeus ao objetivo de perseguir a paridade e reduzir o risco para ambos os polos da relação previdenciária. Bem diz CARLOS AYRES BRITTO, com a clareza de poeta-ministro: “Preciso dar adeus à ilusão / Sem deixar de subir as encostas da vida. / Digo melhor: /Preciso dar adeus à ilusão, Pra poder começar a subir/ As encostas da vida. /Pois subir as encostas da vida/ Nas asas da ilusão/Não é subir: É dar as costas à vida”

 

*Artigo de autoria de Paulo Modesto (professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia)





    

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