Jota*
Os jornais online do último dia 4 de novembro (Folha e O Globo) abriram suas páginas vespertinas com matérias de Djamila Ribeiro e Míriam Leitão adjetivando de “criminosa” a extinção do Bolsa Família, um projeto de quase 18 anos de existência agora trocado por um improvisado Auxílio Brasil de fontes orçamentárias ainda nebulosas.
Seria mesmo de se esperar, a respeito, a reprimenda – ou ao menos a devida investigação – por parte da Procuradora-Geral da República; isto, porém, provavelmente não virá. Na prática, um programa social já estabelecido – que, é fato, ainda guarda marcas que o associam aos governos petistas – será substituído por outro, temerariamente fundado, basicamente para que a atual gestão tenha um benefício social (essencialmente o mesmo) para “chamar de seu”.
Nesse mesmo cenário de (ir)responsabilidade fiscal, foi levada a voto na Câmara, a pretexto de proporcionar orçamento para custeio desse “novo” auxílio, a chamada PEC dos Precatórios. A finalidade prática do movimento é abrir um espaço orçamentário bilionário que permita o financiamento do novo benefício, sem agressão ao texto constitucional de gastos (EC n. 95/***), e assegura alguma liceidade à oportuníssima recriação legislativa.
O caminho, porém, não poderia ser mais infeliz.
O precatório, convém lembrar, é instituto constitucionalmente previsto para procedimentalizar – e organizar – os pagamentos dos dinheiros devidos pela Fazenda Pública (União, estados, municípios e Distrito Federal) por força de decisões judiciais, regendo-se fundamentalmente pelo artigo 100 da Constituição da República. Trata-se, portanto, do “momento-ápice” de realização dos direitos subjetivos dos cidadãos sonegados pelo Estado, ao longo de muitos e muitos anos, depois dos quais resta ao credor a expectativa de finalmente receber o que lhe cabe. E um tal modelo estruturou-se por esse modo, ao contrário do que se dá com os devedores particulares (= execução direta, inclusive mediante bloqueio de contas e dinheiros), exatamente para propiciar aos entes públicos mínima previsibilidade, a bem da continuidade dos serviços públicos.
A previsilidade orçamentária, no entanto, não pode significar o potencial descumprimento da ordem judicial, as mais das vezes mediante arranjos para burlar a efetividade do mecanismo, como, afinal, é o que se pretende com esdrúxula PEC 23/2021.
Com efeito, pelo texto em questão, estabelecer-se-ia, durante 20 anos (art. 106 do ADCT), um “teto” para o cumprimento de ordens judiciais (art.107-A da PEC), sempre equivalente ao valor da despesa paga no exercício de 2016, corrigido na forma do parágrafo 1º do art.107, de modo que os precatórios não expedidos em um ano teriam preferência no ano seguinte (parágrafo 2º do art.107-A da PEC).
A nosso ver, torna-se evidente a inconstitucionalidade da proposta, por diversas razões. A alternativa agride cláusula pétrea constitucional e projeta um ambiente econômico dantesco, de insegurança jurídica e calote fracionado (travestido, na espécie, de moratória institucional).
Vejamos com maior vagar.
No primeiro aspecto, o art.60 da CRFB estabelece como regra geral a possibilidade de a Constituição ser emendada, mas segundo os critérios de adstrição ali definidos. No que interessa a esta análise, interessa reportar o inciso IV do parágrafo 4º, pelo qual sequer pode ser objeto de deliberação congressual qualquer proposta tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Ora, o art. 5º estatui que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (..) XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
É dever do Estado, portanto, proteger o cidadão que está sob o amparo da tutela jurisdicional, assegurando-lhe efetividade jurisdicional, para além da mera “certeza” formal do direito declarado em uma sentença judicial (especialmente se estivermos considerando precatórios alimentares, como usualmente se dá). Essa é, a propósito, o novo conceito de jurisdição que se tem defendido em plagas brasileiras e estrangeiras, destronando a célebre – e formal – definição do grande Giuseppe Chiovenda. Por essa nova concepção, jurisdição é função estatal de tutela (especialmente quando o que está em causa são direitos fundamentais ou alimentares); e, se a jurisdição não é razoavelmente apta a garantir tutela para o cidadão, ela nada mais é do que um arremedo de jurisdição, muito distante do que pretendeu o constituinte originário com o art. 5º, XXXV, da Constituição.
De outra parte, em uma visão eminentemente liberal, cabe recordar que a coisa julgada se relaciona com o outro direito individual tratado pelo constituinte originário como direito fundamental, a saber, o direito de propriedade (art. 5º, XXII), que igualmente não pode ser subvertido por emenda constitucional; e isto efetivamente acontece se a satisfação do crédito titularizado pelo cidadão diluir-se tanto no tempo que, na prática, o direito restará menoscabado e perderá seus objetivos subsistenciais.
E, não bastasse, a PEC dos Precatórios contradiz gritantemente outras normas constitucionais formalmente postas e materialmente consolidadas, trazendo imensa confusão ao sistema. Nessa vereda, impõe aos credores de dinheiro público a condição de mutuantes compulsórios indiretos, fora das hipóteses previstas nos artigos 148, I e II, da Constituição. Além disso, emula hipótese de potencial confisco – quantos credores poderão sobreviver por 20 anos para receber integralmente seus créditos? – ao argumento de um pretenso ajuste de contas; e, desse modo, tisna também o art.150, IV, da Constituição Federal.
Na perspectiva econômica e orçamentária, enfim, resta evidente que a solução alvitrada contribuirá apenas para engendrar uma “bola de neve” fiscal impagável a curto e médio prazos, aumentando a participação dos juros moratórios na dívida total – em detrimento do erário – e comprometendo as contas da União, dos estados, dos munícipios e do Distrito Federal. Tudo isso, acrescente-se, por evidente interesse eleitoral. Aqui, nada se justifica: nem pelos fins, nem pelos meios.
Evidentemente, os pendores liberais que devolveram o Brasil à zona crítica do Índice de Gini (em 2019, nosso índice foi de 0,543, abaixo de Botsuana, Colômbia e México) trarão a sua conta, a ser paga pelas atuais e futuras gerações. Da mesma maneira, se o Brasil tem hoje mais de 13 milhões em condições de extrema pobreza (IBGE, 2020), não há dúvidas de que programas de transferência direta de renda serão essenciais nos próximos anos. Teremos de nos preparar para isso. Mas, diga-se claramente, não à custa do sacrifício de direitos judicialmente certos que são devidos, não raramente, a cidadãos igualmente necessitados.
Por falar em México, e tratando de enganos e desmazelos (em tempos raivosos de fake news), vale bem recordar a sabedoria tolteca: o verdadeiro conflito ético não se dá entre o “bem” e o “mal”; dá-se entre o verdadeiro e o mentiroso. É o que está diante da Câmara dos Deputados neste momento.
*Texto dos juízes Germano Silveira de Siqueira e Guilherme Guimarães Feliciano.