Conjur
Calote, pendura, pedalada fiscal. Independentemente do termo que se adote, o mercado recebeu com enorme surpresa a notícia de que o governo federal submeteu ao Congresso Nacional, no último dia 9 a Proposta de Emenda Constitucional n° 23/2021 (PEC 23/2021), que altera as regras relativas ao pagamento dos precatórios, mecanismo constitucionalmente previsto que consubstancia as dívidas das Fazendas Públicas federal, estaduais, municipais e distrital reconhecidas por sentenças transitadas em julgado.
Por meio da PEC 23/2021, o governo pretende estabelecer o parcelamento obrigatório de todos os precatórios com valor superior a R$ 66 milhões, a serem pagos 15% à vista (até o final do exercício financeiro seguinte ao da constituição do precatório) e o restante em nove parcelas anuais, bem como impõe uma limitação provisória dos pagamentos anuais de precatórios a 2,6% da receita corrente líquida, o que também sujeita precatórios entre R$ 66 mil e R$ 66 milhões a eventual parcelamento. Ademais, determina a correção de precatórios de qualquer natureza por meio da taxa Selic — sendo que hoje a correção é determinada a partir da natureza do precatório, podendo incidir a Selic ou IPCA + 6%.
A PEC busca criar, ainda, um fundo alimentado por receitas de dividendos, concessões e outros ativos, que seriam direcionadas ao pagamento de dívida pública e à "antecipação" de parcelas dos precatórios parcelados. Esses recursos não seriam contabilizados no orçamento nem entrariam na regra do teto de gastos, configurando o que o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega trata como pedalada fiscal, responsável pela perda de mandato da ex-presidente Dilma Rousseff.
As mudanças pretendidas têm motivação exclusivamente política, porquanto o governo federal deseja deixar de pagar os precatórios devidos para aplicar os recursos em outros programas (caso, v.g., das mudanças no programa Bolsa Família). Aliás, os precatórios foram tratados pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, como "meteoro vindo de outros poderes" e deve, se aprovada, ter um efeito nefasto tanto para a já diminuta credibilidade internacional do país — pois revela que a nossa sustentabilidade fiscal continua claudicante — como para a segurança jurídica, haja vista que alonga, a perder de vista, o pagamento de créditos judicialmente reconhecidos e representa um enorme risco ao êxito das arbitragens público-privadas.
Quanto aos impactos financeiros da medida, os efeitos da discussão da PEC 23/2021 foram imediatos e afetaram os preços de ativos, sendo que, segundo o próprio presidente do Banco Central do Brasil destacou, a "coisa mais importante em um país que tem o nível de dívida que o Brasil tem, que já flertou com esse problema muitas vezes, é passar uma mensagem de credibilidade fiscal".
Caso esse rompante político prospere, as consequências para o país serão profundas. Trata-se de verdadeira repristinação da constitucionalização do calote, ou, melhor dizendo, do Dia do Pendura nos precatórios, que foi tentada diversas vezes anteriormente.
Como principal expoente desse mote, lembre-se da Emenda Constitucional 62/2009, que recebeu a alcunha de "emenda do calote", tanto que o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do parágrafo 15 do artigo 100 e do artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), em 2013, por meio das ADIs 4357 e 4425. À época, o Pretório Excelso barrou a criação de um regime especial de pagamento, que previa o parcelamento da dívida em 15 anos e a destinação de 1% a 2% da receita de estados e municípios para uma conta especial, voltada exclusivamente ao pagamento dos precatórios, por afronta às cláusulas pétreas da duração razoável do processo, garantia de acesso à Justiça, independência entre os poderes, proteção à coisa julgada e segurança jurídica.
A verdade é que o tema dos precatórios tem sido utilizado pelos governantes brasileiros como instrumento de manobra em detrimento dos credores públicos há mais de 30 anos. Há uma sucessão de alterações de prazos e formas de pagamento dos precatórios e de ações declaratórias de inconstitucionalidade. Tudo em razão da manipulação dos recursos públicos há décadas, ao arrepio das diversas garantias constitucionais aos credores.
Pode-se dizer, inclusive, que esse ciclo vicioso de constituição da dívida, não pagamento pelo ente público por falta de recursos, alongamento do prazo de pagamento e aplicação de juros de mora apenas aumenta a dívida pública e fere direitos básicos dos credores, além de tornar as dívidas verdadeiramente impagáveis.
O problema é crônico e vem sendo carregado desde a promulgação da atual Constituição, que nasceu prevendo a postergação dos precatórios atrasados, em oito anos, a partir de 1º/7/1989. Posteriormente, a Emenda Constitucional nº 30/2000 alongou o prazo para liquidação dos precatórios pendentes, ou decorrentes de ações ajuizadas até 31/12/1999, pelo prazo de dez anos. Essa EC foi objeto da ADI 2362, ajuizada pelo Conselho Federal da OAB em 6/12/2001, cuja liminar foi deferida somente em 25/11/2010, mas que ainda pende de julgamento do mérito, previsto para o mês que vem.
Depois veio a EC nº 62/2009, declarada inconstitucional, que foi substituída pela EC nº 94/2016 e dilatou o prazo para pagamento até 2020, e a EC 99/2017 mais uma vez estendeu o prazo, de até 2020 para até 2024 para estados e municípios quitarem precatórios, além de permitir a compensação fiscal e prever a disponibilização de uma linha de financiamento do governo federal aos estados e municípios para o pagamento dos precatórios em atraso.
Mais recentemente, em março, foi aprovada a Emenda Constitucional 109, conhecida como PEC Emergencial, que revogou o parágrafo quarto do artigo 101 do ADCT, o qual previa uma linha de crédito especial da União federal aos entes devedores para pagamento dos seus precatórios, e postergou por mais cinco anos o prazo para pagamento dos precatórios estaduais, do Distrito Federal e dos municípios (de 2024 para 2029). A moratória desses débitos, que foram estimados em R$ 100 bilhões pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), é objeto das ADIs 6804 e 6805, ajuizadas pelo conselho em maio deste ano.
O tema da PEC 23/2021 adquire contornos ainda mais graves quando se coloca em perspectiva a figura do investidor estrangeiro, uma vez que o texto, tal como proposto, suscita desconfianças legítimas entre investidores sobre a disposição do país, especialmente o governo federal, de honrar seus compromissos financeiros e jurídicos.
Afinal, pode-se afirmar que, no ordenamento jurídico atual e com os avanços dos últimos cinco anos, a Administração Pública brasileira se comprometeu a resolver, por arbitragem, praticamente todas as disputas oriundas de contratos administrativos dos setores estratégicos de infraestrutura.
Lembre-se, nesse contexto, que a Lei n° 13.129/2015 alterou a Lei de Arbitragem (Lei n° 9.307/96) e ratificou a possibilidade de submissão dos entes da Administração direta e indireta à arbitragem, colocando uma pá de cal definitiva sobre as discussões que existiam acerca desse tema.
Depois da alteração da Lei de Arbitragem, seguiu-se uma verdadeira profusão de textos legais e infralegais disciplinando o uso da arbitragem pelos entes públicos federais, estaduais e municipais. O principal deles é o Decreto federal n° 10.025/2019, que substituiu a revogada Lei dos Portos (Lei 12.815/13) e dispõe sobre a arbitragem nos setores portuário e de transporte rodoviário, ferroviário, aquaviário e aeroportuário.
No âmbito estadual, há a pioneira Lei de Arbitragem mineira (Lei estadual n° 19.477, de 2011) e o decreto estadual paulista (Decreto n° 64.356/2019), além dos diplomas municipais paulistano — Lei municipal n° 17.324/2020 e Decreto 59.963/2020 — e carioca (Decreto n° 46.245/2018).
Por meio de tais textos, o legislador criou novos requisitos para as arbitragens público-privadas, como é o caso da exigência de esgotamento prévio da esfera administrativa como requisito adicional de arbitrabilidade objetiva — que é ilegal e inconstitucional, consoante sustentado pelo professor Floriano de Azevedo Marques Neto: "Tenta-se reeditar regra vigente na Constituição anterior, mas rejeitada pela atual — e não sem razão. A nova exigência é inconstitucional. E é também contrária à lei e aos objetivos da arbitragem. Se a Constituição consagra a inafastabilidade da jurisdição estatal, a mesma regra tem de valer para a jurisdição arbitral que a substitui".
Não obstante, não se olvide do fato de que qualquer investidor que desejar submeter uma disputa com um ente público à arbitragem deve levar em consideração todos os custos de transação envolvidos nessa decisão.
A começar pela obrigatoriedade de antecipar todas as despesas da arbitragem, que são infinitamente superiores às despesas envolvidas em um processo judicial. Não bastasse isso, o ente privado também deve suportar, durante a arbitragem, seus custos próprios (com advogados, assistentes técnicos e pareceristas), além de arcar integralmente com os honorários de eventuais peritos nomeados pelos árbitros. Tudo, novamente, com arrimo nas inovações legislativas citadas.
E, por fim, caso venha a ser proferida uma sentença favorável aos interesses do particular, a "cereja no bolo" (ou sentença de morte para a arbitragem público-privada) é a sujeição ao sabidamente moroso regime dos precatórios (seja para o recebimento de montantes que sejam fixados na sentença condenatória, seja, ainda, para fins de reembolso das despesas da arbitragem). A vingar a mudança proposta na PEC 23/2021, o investidor privado receberá seu crédito em suaves prestações anuais e ao longo de uma década.
Em suma, a PEC 23/2021 representa uma aberração econômica, fiscal e jurídica. O desincentivo é gigantesco e coloca em sério risco os ganhos de eficiência, economia processual e segurança jurídica que a arbitragem tem trazido para a solução dos litígios entre a Administração Pública e os entes privados.
Espera-se que o Congresso Nacional não seja conivente com mais essa tentativa de institucionalizar o calote público, caso contrário, o Poder Judiciário será novamente chamado a intervir para corrigir esse disparate, que legitima flagrantes violações às garantias constitucionais de acesso à Justiça, duração razoável do processo e segurança jurídica.
*Texto do secretário da Comissão Especial sobre Sociedade de Consultores em Direito Estrangeiro da OAB Federal, Riccardo Giuliano Figueira Torre.