Jota
O julgamento pautado para o dia 16 de dezembro no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o recurso extraordinário (RE) 1.101.937, que trata da extensão dos efeitos de qualquer decisão tomada em ação civil pública (ACP) no país, tem o potencial de gerar uma crise sistêmica no ordenamento jurídico brasileiro envolvendo a tutela coletiva de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Esse diagnóstico foi apresentado durante um debate realizado nesta sexta-feira (11/12) pela Casa JOTA, em parceria com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), para tratar dos possíveis cenários decorrentes do julgamento (assista aqui).
Em duas mesas de debate, o evento trouxe as perspectivas sobre a questão de Cláudia Lima Marques, professora titular da Faculdade de Direito da UFRGS e presidente do Comitê de Proteção Internacional dos Consumidores, ILA; André de Carvalho Ramos, procurador regional da República; Kazuo Watanabe, professor-doutor Sênior da USP e sócio fundador de Trench Rossi Watanabe; Mário Luiz Sarrubbo, procurador-geral de Justiça de São Paulo; e Leonardo Faustino, superintendente Nacional Jurídico na Caixa Econômica Federal.
No julgamento do STF, os ministros vão avaliar à luz dos artigos 2º; 5º, XXXVII, LIII e LIV; 22, I; e 97 da Constituição Federal, a constitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), que impõe limitação geográfica à coisa julgada coletiva.
O artigo que será objeto de julgamento estabelece que “a sentença civil fará coisa julgada erga omnes [cujo efeito se aplica a todos], nos limites da competência territorial do órgão prolator”. Ou seja, o dispositivo firma que uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em ACP só teria efeitos dentro dos limites do estado e não para todo o Brasil.
“Esse cenário [de restrição territorial dos efeitos da coisa julgada na ação civil pública] gera e ainda vai gerar muita dúvida. Será uma crise sistêmica [em caso de declaração da constitucionalidade do artigo]. Abandonar as ACPs nesse momento vai fazer com que milhares de ações idênticas tenham que ser processadas em várias comarcas por um Poder Judiciário já atolado”, disse André de Carvalho Ramos.
Na visão de Leonardo Faustino, superintendente Nacional Jurídico na Caixa Econômica Federal, independentemente do resultado, o fato é que “para um lado ou outro, o que se almeja é a pacificação do tema e a segurança jurídica da questão”.
Teses defendidas
Os que defendem a inconstitucionalidade do artigo apontam que ele fraciona o direito de amplo acesso à Justiça, o que configura um retrocesso na garantia do princípio da igualdade assegurado pelo Estado Democrático de Direito, segundo avaliou Mário Luiz Sarrubbo, chefe do Ministério Público do Estado de São Paulo.
“Reconhecer as limitações impostas no artigo 16 é um colossal retrocesso ao sistema brasileiro de tutela coletiva. No fundo vivemos no Brasil um momento de retrocesso”, avaliou. “Quando nós, lá em 1988, optamos por um Estado Democrático de Direito optamos também pela igualdade e por um Estado que fomente e materialize essa igualdade. Essa limitação, na verdade, aprofunda a desigualdade porque vamos passar a ter tratamentos diversos para pessoas iguais, para consumidores que estão na mesma situação.”
O procurador regional da República André de Carvalho Ramos, apontou o modelo de ACPs com extensão para todo o território nacional como “perfeitamente compatível com a missão constitucional”.
“O Poder Judiciário é o guardião dos vulneráveis. Então entendo que a tutela coletiva de direitos está hoje protegida pelo direito de acesso à Justiça estabelecido no art 5º da CF. Por que existe a chamada tutela coletiva? Porque em vários países do mundo se percebeu, com a ascensão do estado de bem-estar social, um aumento na criação de inúmeros litígios envolvendo direitos que outrora sequer eram conhecidos. Percebeu-se que não era mais possível tratar as demandas da maneira que os romanos tratavam”, afirmou.
Na avaliação do professor Kazuo Watanabe, aqueles que defendem a constitucionalidade do artigo, com base na alegação de que juízes de primeiro grau não poderiam tomar decisões que produzissem efeitos erga omnes para o todo país, cometem uma confusão entre o conceito de competência e jurisdição.
“Por muito tempo, até o avanço da ciência processual, se sustentou que a competência era uma medida da jurisdição. Mas, estudos mais aprofundados mostram que a competência não é emitida na jurisdição. É apenas um critério para determinar quais processos aquele juiz pode julgar”, afirmou Watanabe.
“Uma coisa é limite territorial que estabelece apenas adequação da relação do juiz com processo. Outra coisa é o limite da jurisdição que ele exerce, determinada pelo objeto litigioso do processo. Está havendo uma confusão entre competência e jurisdição”, pontuou o professor.
Os que reconhecem a constitucionalidade do artigo 16 da Lei de Ação Civil Pública, entretanto, sinalizam que restringir os efeitos da sentença da coisa julgada coletiva foi uma opção do legislador. Isso porque originalmente, quando legislação entrou em vigor, em meados da década de 80, este trecho que limita a extensão da sentença não existia.
A restrição foi inserida a partir da Medida Provisória 1.570-5/1997, que tinha por função disciplinar a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, e que foi posteriormente convertida na Lei 9.494/1997. O objetivo da norma era o de combater as inúmeras ações que estavam sendo ajuizadas contra privatizações no governo de Fernando Henrique Cardoso.
“Na verdade, me parece que a questão é muito mais de opção legislativa do que propriamente a possibilidade ou não de se estender os julgados a todo o território nacional”, defendeu Leonardo Faustino, da Caixa Econômica Federal.
Na visão de Faustino, há uma grande preocupação com a possível violação de isonomia do processo, com a possibilidade de eleição, por parte do autor da ação, do fórum em que vai se propor a ação.
“Com a possibilidade de extensão do dano nacional, um magistrado eleito pelo autor, que vai escolher onde vai ajuizar a demanda, pode tomar uma decisão em sede de tutela de urgência que abrangerá todo o território nacional. Naturalmente, ao fim e ao cabo, a matéria jurídica de direito coletivo vai ser pacificada no âmbito dos tribunais superiores. A questão da escolha do magistrado é algo que não pode passar ao largo, principalmente em comarcas onde há um único juízo”, afirmou.
O professor Watanabe defendeu que a opção legislativa deve respeitar a natureza de direitos que são ontologicamente indivisíveis. “Por exemplo, o direito à qualidade de vida, a um meio ambiente saudável, eu não posso fragmentar. Assim como no plano da relação de consumo, exemplo uma publicidade enganosa. O direito a uma publicidade correta é indivisível. Não posso fragmentar. Essa natureza das coisas não é suscetível a uma disciplina por mera opção do legislador”.
Impacto na defesa do consumidor
A ação que chegou para julgamento no STF se originou em uma ACP proposta pelo Idec na Justiça Federal de São Paulo, no ano de 2001, contra 16 instituições financeiras, com a finalidade de revisar cláusulas de contratos firmados no âmbito do Sistema Financeiro Habitacional (FSH).
Depois de inúmeras decisões, e ingressos de recursos, o caso chegou à mais alta Corte do país. No plenário virtual, por maioria, os ministros já reconheceram a existência da repercussão geral em julgamento finalizado em fevereiro deste ano. O recurso é o leading case do tema 1.075 da repercussão geral.
Na avaliação de Cláudia Lima Marques, professora titular da Faculdade de Direito da UFRGS e presidente do Comitê de Proteção Internacional dos Consumidores, essa ação foi escolhida de forma equivocada para debater a questão.
“Para esse julgamento, o STF escolheu um caso de Direito do Consumidor. E o problema é que o Código de Defesa do Consumidor é posterior à Lei de Ação Civil Pública. Na teoria geral, ele é um micro sistema. Só que ele trouxe essa linha ideológica da ação coletiva [com efeito erga omnes]”, afirmou.
De fato, no artigo 103 do CDC, que trata das ações coletivas, o inciso I define que a sentença fará coisa julgada erga omnes, sem definir limites para sua abrangência. “Já se tem precedente no STF de que em casos envolvendo o sistema bancário, há de se aplicar o CDC, que em seu artigo 90 diz ser prioritário em relação à Lei de Ação Civil Pública”.
Em sua perspectiva, caso os ministros considerem o dispositivo constitucional, não será “só uma crise sistêmica enorme, mas também trará a necessidade de atualização do Código de Defesa do Consumidor”.
Sistema judiciário preparado
Aqueles contrários ao artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública sustentam que não é factível limitar o acesso à Justiça reduzindo, ao se reduzir a amplitude dos efeitos da coisa julgada, se o sistema do Poder Judiciário tem inúmeros instrumentos para apresentar recursos às decisões proferidas em graus inferiores.
“O sistema recursal brasileiro é extremamente afiado. Tanto que nesse tema de Repercussão Geral, a discussão tem mais de 20 anos. Há muito espaço para a ampla defesa, há muito espaço para superar determinadas decisões”, afirmou André de Carvalho Ramos. “Me chama muita atenção que a resposta a essa eventual decisão possa representar uma barreira de acesso à justiça. Se esses juízes estão tomando decisões desvairadas, nós temos os recursos”.
Mesma linha de argumentação adotou o professor Watanabe, para quem o sistema de ação coletiva brasileiro procura dar uma dimensão mais dialógica ao processo coletivo “ampliando o contraditório através de amicus curiae”. “É possível fazer esse debate no mesmo processo coletivo, desde que se estruture bem. Esse é o sistema ideal, mais do que permitir a fragmentação em milhares de demandas para, no fim, instituir o incidente de resolução de demanda repetitiva, que se escolhe um processo não representativo, onde o debate não foi bem feito e a uniformização da jurisprudência se dá nesse processo”.
Nesta ação do STF em questão houve, ao menos, 12 pedidos de ingresso como amicus curiae para fazer parte do julgamento. Todos foram negados pelo relator, o ministro Alexandre de Moraes.
Demandas futuras
Em breve encerramento do webinar, Christian Tárik Printes, um dos advogados que defendem o Idec no julgamento do STF, falou sobre a necessidade de pacificar a questão para dar mais segurança jurídica ao sistema de ACPs. Na sua visão, esse mecanismo deve ganhar mais relevância com os desafios que serão impostos com a evolução da sociedade.
“Temos no debate do futuro novos direitos fundamentais, em relação à evolução da sociedade de massa, caso, por exemplo, de proteção de dados pessoais e do próprio direito à informação, que não tem encontrado barreiras geográficas para limitar a reparação de tais danos”, afirmou Printes.
“A recente Lei Geral de Proteção de Dados trará novos desafios ao Poder Judiciário no âmbito da tutela coletiva, pois em muitos casos o dano pode ser tão difuso e capilarizado que pode ultrapassar as fronteiras brasileiras, ainda que tal dano tenha se originado em um estado”, concluiu.