Conjur*
Nada menos republicano que buscar extorquir vantagens privadas mediante o sequestro de agendas coletivas. A realidade brasileira, contudo, tem sido pródiga em ações e omissões que caminham em tal sentido.
Por ocasião da efeméride da proclamação da República no ano passado, arrolei, nesta coluna Contas à Vista, tentativas de majorar soluções privadas nos serviços públicos de saúde e educação, por vezes ao arrepio do nosso ordenamento pátrio.
A asfixia fiscal ao Estado brasileiro — contendo seu tamanho mesmo em áreas essenciais — acaba por fomentar nichos de mercado a serem explorados, entre outros instrumentos, por meio de vouchers, sem garantia de qualidade, acesso universal e efetividade. Exemplifica tal horizonte a previsão na regulamentação do Programa Auxílio Brasil de benefício complementar chamado "Auxílio Criança Cidadã". Ao invés de ampliar a rede pública de ensino, a oferta de vouchers mensais de R$200,00 para horário parcial e R$300,00 para horário integral em creches, na forma do art. 65 do Decreto 10.852, de 8 de novembro de 2021, soa precária e insuficiente resposta estatal para atender ao considerável déficit de vagas em tal nível educacional.
O lastro jurídico desses auxílios é, por enquanto, frágil: Medida Provisória 1.061, de 9 de agosto de 2021, cujos efeitos orçamentário-financeiros supostamente findarão em 31 de dezembro de 2022. A demanda é permanente, mas a solução foi concebida de forma temporalmente limitada, até mesmo para evitar incorrer no regime jurídico da despesa obrigatória de caráter continuado a que se refere o art. 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Não é demasiado lembrarmos que, em meio à realidade pandêmica ainda em curso, acumulamos mais de 610 mil mortes majoritariamente evitáveis. A insegurança fiscal tem sido a tônica durante as muitas idas e vindas no enfrentamento à Covid-19 no Brasil. Na origem desse impasse está a opção por retomar a plena vigência do teto dado pela Emenda 95/2016 neste 2021, porque imprudentemente tentaram nos fazer crer que a pandemia fosse acabar com os fogos de artifício do réveillon passado. Obviamente a crise não acabou e o teto já deveria ter sido revisto pela Emenda do Orçamento de Guerra para que pudéssemos enfrentar adequadamente os efeitos sociais, econômicos e sanitários da doença não apenas em 2020, mas também no médio prazo (afinal, recuperação típica do pós-guerra toma tempo).
Pregar redução do Estado, quando mais precisamos da sua capacidade de resposta tempestiva e suficiente é apostar na iniquidade e no esgarçamento das condições de vida em sociedade. Eis o contexto em que sobreleva a percepção de risco no fato de se descontinuar, às vésperas das eleições de 2022, política pública estruturada há quase duas décadas para supostamente iniciar – a partir do zero (ex nihilo) – a garantia de mínima subsistência à população socialmente mais prejudicada pela perda da renda e do trabalho durante a crise decorrente da Covid-19. Ora, substituir o Programa Bolsa Família por uma despesa alegadamente discricionária de duração delimitada tende a ser uma franca distorção para, entre outras dimensões, falsear a (des)necessidade de medida compensatória a que se refere o art. 17 da LRF.
A extinção do Bolsa Família e, por conseguinte, do cadastro único que lhe subsidiava uma ampla rede de consecução e monitoramento traz consigo temor de retrocesso quanto ao regime jurídico do seu sucessor. Segundo Denise De Sordi:
"Com o objetivo de enxugar o custo social, o Auxílio Brasil é a síntese dos esforços pelo colapso da rede de proteção social brasileira. [...] os mais simbólicos são a desativação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o desincentivo dos programas de produção de alimentos pela agricultura familiar, o desmantelamento dos conselhos gestores dos programas sociais e o completo desmanche do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico).
Com o Auxílio Brasil, isso se concretiza na medida em que programas e conselhos citados acima foram transformados em meros instrumentos técnicos de gestão e de fiscalização das famílias atendidas. Rompeu-se a cadeia de ações que articula as políticas públicas sociais e transferiu-se a responsabilidade do Estado para o "incentivo ao esforço individual", tal como previsto no artigo 1º da MP.
Resumir a discussão dos programas sociais ao dinheiro que será transferido às famílias de trabalhadores é esquecer que a saída do Brasil do Mapa da Fome, em 2014, e a existência de alguma expectativa de mobilidade social só foram possíveis mediante a articulação de programas que sustentavam a rede de proteção social brasileira, de forma relacionada com políticas sociais consistentes, como a valorização do salário mínimo e a geração de empregos formais.
[...] Não há "esforço individual" suficiente em meio ao desemprego, à carestia e à pobreza provocados sistematicamente por escolhas político-econômicas que minam o acesso aos direitos sociais."
Por duas vezes neste 2021, a pretensão de redesenhar fiscalmente a Constituição de 1988 constrangeu a segurança alimentar dos cidadãos mais vulneráveis, condicionando-lhes o direito ao pertinente auxílio pecuniário estatal a agendas como desvinculação do superávit financeiro de fundos públicos e securitização de dívida ativa alheia aos pisos em saúde e educação.
A alegada urgência para a tentativa de aprovação da Proposta de Emenda à Constituição nº 23/2021 (PEC dos Precatórios) deveria nos lembrar que a mesma estratégia foi adotada em relação à PEC 186/2019 (PEC Emergencial), promulgada como Emenda 109, em 15 de março deste ano.
A narrativa se repete: sem essa ou aquela reforma fiscal supostamente indispensável, não haveria como pagar o auxílio aos mais vulneráveis. A controversa tese de que não haveria alternativa se soma ao manejo extorsivo do calendário de pagamentos do auxílio de natureza alimentar, seja qual for o nome que lhe seja atribuído: Auxílio Emergencial, Bolsa Família ou Auxílio Brasil.
No primeiro trimestre de 2021, houve a descontinuidade do pagamento do Auxílio Emergencial, o que potencializou o risco de exposição à contaminação pelo coronavírus da população mais carente. Não é sem razão que o pico de casos e mortes por Covid-19 ocorreu exatamente a partir dessa circunstância em nosso país.
A Emenda 109/2021 chegou a prever no seu art. 3º um limite francamente arbitrário e insuficiente de R$44 bilhões para continuar a pagar o Auxílio Emergencial, mediante créditos extraordinários no segundo ano da pandemia. O art. 3º da EC 109 restou, por si só, desmoralizado com o decurso do tempo, mas a fome persiste e nenhuma solução estrutural foi apresentada para resguardar segurança alimentar às pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza.
Agora a pandemia está aparentemente sob controle, mas ainda não há oferta ampla de condições de trabalho e de renda para os cidadãos mais vulneráveis. Fato é que tanto em março, quanto agora em novembro, a fome de milhões de brasileiros é usada como pretexto para esvaziar fiscalmente ainda mais a rede de proteção social que fora construída no país para mitigar os efeitos da nossa extrema desigualdade.
A PEC dos Precatórios não só repete, como também, em última instância, atesta o fracasso da narrativa extorsiva adotada na aprovação da Emenda Emergencial: arremedos fiscais de curto fôlego não enfrentam o mal estar estrutural das nossas finanças públicas.
Postergar indefinidamente a quitação de precatórios, mediante seu acúmulo potencialmente explosivo, apenas esvaziará a força das decisões judiciais e maquiará contabilmente a ampliação do endividamento público. É inegável, pois, a inconstitucionalidade da PEC 23/2021.
Se, em poucos meses, a Emenda 109/2021 revelou-se um cínico engodo fiscal, a tendência é que a PEC dos Precatórios siga pelo mesmo caminho. Ambas prometem algum alívio de curto prazo para a insegurança alimentar da população mais vulnerável, mas entregam mitigação cada vez maior da capacidade estatal de executar serviços públicos e de assegurar proteção social.
O espaço a ser aberto pela PEC 23/2021 no teto no próximo ano tende a ser manejado em prol do curto prazo eleitoral dos atuais mandatários políticos. Noutro giro, centenas de bilhões de reais em recebíveis da dívida ativa poderão vir a ser securitizados sem resguardo proporcional dos pisos em saúde e educação. Vale lembrar que a capacidade arrecadatória estatal tem sido aviltada por estratégias que literalmente fomentam a sonegação tributária, por meio de programas quase semestrais de reparcelamento de débitos (risco moral de REFIS sucessivos). Assim, quase toda a dívida ativa poderá vir a ser considerada como de “difícil recuperação” e, portanto, suscetível às controversas operações previstas nos §§7º e 8º a serem inseridos no art. 167 da CF/1988.
A iniquidade é patente: de um lado, a promessa é abrir margem fiscal para pagar o Auxílio Brasil, enquanto, de outro, volumosas despesas de curto prazo eleitoral serão trafegadas em 2022. Tudo isso será feito ao custo da preterição indefinida da quitação de precatórios e da terceirização controversa da gestão da dívida ativa por meio de securitização danosa ao erário e aos pisos de custeio da saúde e da educação.
O saldo final dessas “reformas fiscais” é a desmoralização da própria Constituição de 1988, que tem sido submetida a alterações praticamente semestrais para que alguma migalha assistencial supostamente chegue a quem tem tentado aplacar a fome com ossos.
Criam dificuldades fiscais para manejarem facilidades eleitorais e econômicas. Nesse contexto, nossa República é extremamente suscetível a chantagens e extorsões que negam os seus objetivos fundamentais inscritos no art. 3º da CF. A Emenda Emergencial e a PEC 23/2021 evidenciam dura e tragicamente que não passam de quimera distante tanto o princípio republicano, quando a segurança alimentar dos cidadãos mais vulneráveis.
*Texto da procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Élida Graziane Pinto.