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'Cabe ao Estado garantir processo célere e evitar sucumbência exorbitante'

  18/01/2021



Conjur 

Os honorários sucumbenciais devem ser pagos conforme prevê o Código de Processo Civil, sem que haja fixação equitativa quando a causa tiver valores altos. É o que pensa o ex-advogado-geral da União, Luís Inácio Adams.

Em entrevista exclusiva à ConJur, ele afirmou que não cabe aos juízes definir o que é um valor exorbitante. Deve haver uma inversão de valores: é o Estado quem deve se preparar para que um processo não fique correndo por décadas sem resolução.

A discussão já bateu às portas dos tribunais superiores. No Supremo Tribunal Federal tramita uma Ação Declaratória de Constitucionalidade em defesa do seguimento do CPC. A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça começou a discutir o tema em recurso especial, mas o caso está suspenso por pedido de vista. 

Apenas a ministra Nancy Andrighi votou até agora. A ministra entende que deve haver apreciação equitativa para situações excepcionalíssimas "de ganhos aberrantemente altos em relação ao trabalho prestado". Para ela, inclusive, a ADC no STF tenta barrar o STJ de dar a última palavra na interpretação da lei federal.

Não é o que Adams acredita. Para o ex-AGU, a regra do CPC foi estabelecida para racionalizar os processos e tirar a advocacia de uma realidade que, segundo ele, "era confusa e caótica". "Cada juiz decidia qual honorário que o advogado iria receber. Havia nisso uma percepção de discricionariedade em que cada decisão era uma divisão aleatória", conta.

Um exemplo citado pelo advogado é de um processo que durou 30 anos e no qual os honorários chegaram a R$ 500 milhões. De acordo com Adams, isso deveria ter sido resolvido pelo Estado anos antes e não foi. Esse é um sintoma de um sistema que prefere deixar o problema correr — uma prática lesiva para a razoabilidade do processo.

Defensor de saídas não judiciais para a resolução de conflitos e de descentralizações, ele critica que se jogue para o futuro determinadas ações, "para facilitar a vida de quem foi irresponsável antes e dar um jeito de não onerar tanto". "Se o Estado errou, tem que pagar. Se a empresa errou, tem que pagar. Tem que ser o custo."

Leia abaixo trecho da entrevista:

ConJur — Quais são as principais dificuldades quando se trata dos honorários de sucumbência?
Luís Adams —
 É difícil pelo seguinte: o Brasil tem uma tradição baseada no recebimento de sucumbência como fonte de renda dos advogados. Não é um padrão como em outros países, de pró labore, sistema em que o advogado é remunerado pelo seu tempo de trabalho, independentemente do resultado atingido. Países como os Estados Unidos, quando um escritório participa do success fee [modelo de remuneração], que é o honorário de sucesso, essa participação é extremamente alta. Há casos de escritórios em que a participação no resultado é de 60% ou 70% do caso. 

ConJur — Muito porque litigar em outros países é caro...
Luís Adams —
 Isso! A prática em países como os Estados Unidos é que você faça acordo em mais de 80% dos casos, inclusive tributários. O sistema brasileiro é barato e só litiga, litiga e litiga. Essa dinâmica se tornou um padrão de receita para muitos escritórios de advocacia. A sucumbência surgiu como uma compensação pelo custo do processo em que a parte pagava o advogado e tudo isso era ressarcido por quem perdia o processo. Só que ela evoluiu como uma remuneração dos escritórios. 

Essa fonte de remuneração é base principalmente dos escritórios pequenos e médios. Os grandes escritórios de advocacia não têm muito problema com isso, até porque uma grande parte da remuneração das empresas é baseada em pro labore. Basicamente, é um sistema de financiamento do próprio escritório, em que os resultados obtidos com sucesso em um processo tiveram para esses escritórios uma fonte significativa de resultado. E, normalmente, esses escritórios representam pequenos litigantes contra grandes empresas. 

ConJur — O sr. concorda que os honorários são uma forma de racionalizar o processo judicial?
Luís Adams —
 Sim. O núcleo do debate é que toda causa tem um conteúdo econômico. Não existe nada inestimável. No final do processo, tem que condenar a alguma coisa, certo? Por exemplo, se não posso executar uma obrigação de fazer, tenho que convertê-la em indenização. O valor financeiro serve para compensar inclusive o valor moral associado à causa. O processo judicial minimiza perdas. Em caso de indenização por morte, por exemplo, o processo judicial não traz vida à pessoa, mas gera uma compensação pela perda financeira ajudando a família e melhorando um pouco a permanência dos vivos. E esse conteúdo econômico é a base da elaboração de qualquer trabalho de advocacia. 

ConJur — A OAB, por exemplo, quer evitar a fixação equitativa de honorários quando a causa tem valores altos, já que o artigo 85 do CPC só a promove quando o valor é muito baixo ou irrisório.
Luís Adams —
 Estamos falando de aplicação pura e simples da lei. A regra que foi estabelecida é uma regra higienizadora de uma realidade que era confusa e caótica, em que cada juiz decidia qual honorário que o advogado iria receber. Havia nisso uma percepção de discricionariedade em que cada decisão era uma divisão aleatória. 

ConJur — Pode dar alguns exemplos?
Luís Adams —
 O juiz poderia decidir que, se é o Estado que vai receber honorários, então não precisa, porque já recebe os impostos; ou se é uma pessoa mais pobre, coloca honorários altos; se é uma empresa, coloca baixo. Essa lógica quebra inclusive a impessoalidade do julgamento porque a arbitragem dos honorários é baseada em considerações subjetivas em relação às partes. A regra do CPC traz parâmetros, margens nas quais, dependendo da situação do processo, o juiz vai estabelecendo a sucumbência. Isso é absolutamente racional, inclusive em benefício do próprio Judiciário. Se a parte quer recorrer, ótimo, tem direito a isso; mas saiba que, se perder, vai pagar uma sucumbência maior, porque existe um custo de recorrer. E isso a sucumbência tem que estabelecer.

ConJur — No caso em discussão na Corte Especial do STJ, a ministra Nancy Andrighi defendeu a apreciação equitativa da sucumbência quando o valor da causa for desproporcionalmente alto. Trata-se de uma exceção de pré-executividade em que o valor chegou a R$ 300 mil. Como o senhor avalia esses valores exorbitantes?
Luís Adams —
 Sou a favor da regra, e não de arbitrar valores para mais ou para menos. Se a regra dá R$ 300 mil, são R$ 300 mil! A sucumbência existe porque a União litigou contra alguém indevidamente, então isso tem que ser pago. Mesmo a pré-executividade tem um valor. A razão de ser da pré-executividade é que os embargos impõem um ônus excessivo para a parte, para falar que ela precisa de garantias. Isso muitas vezes criava um impedimento para impugnar aquilo que o Estado estava achando que tinha direito. 

O grande problema do país é que tendemos a transformar causas pequenas em problemas grandes no futuro. Demoramos para decidir porque insistimos em teses erradas, porque o sistema processual acaba sendo onerado nessa dinâmica. É preciso estabelecer a percepção do risco. Não há percepção de risco em que o Judiciário vai ser sempre onerado. Isso vale para o Estado e vale para o contribuinte. 

Já ouvi um servidor público falando para o cidadão "você tem razão, mas eu não posso fazer nada, então leva para o juiz". Isso é inaceitável! Se eu, como agente público, entendo que o cidadão tem razão, tenho o dever de viabilizar isso. Não posso simplesmente achar que o Judiciário é a saída fácil para as minhas inseguranças como agente público ou as minhas responsabilidades como pessoa privada. Se eu não quero te pagar, você executa minha ação que eu vou te pagar em cinco anos. Isso é uma estratégia, mas o Judiciário não pode facilitar esse processo. 

ConJur — O Estado responde, então, pela demora para a qual ele mesmo colaborou.
Luís Adams —
 O que é um valor exorbitante? O valor virou exorbitante porque o processo demorou, porque houve muita resistência. Então, por que não fizeram um acordo nisso? Por que insistiram até o final? Por que impuseram um ônus para o Judiciário? O Estado tem que pagar. 

Dia desses vi um caso de R$ 500 milhões de honorários. É altíssimo. Mas existe um custo de 30 anos no processo. Deveria ter sido resolvido pelo Estado lá atrás, e não foi. Essas são características de um sistema que prefere, em vez de resolver o problema, deixar ele correr. Deixa o problema para os outros, porque daqui a 30 anos a parte pode estar aposentada ou até ter morrido. 

Esse grau de irresponsabilidade com o agora é uma irresponsabilidade com o futuro. Mas não pode, no futuro, para facilitar a vida de quem foi irresponsável antes, dar um jeito de não onerar tanto. Se o Estado errou, tem que pagar. Se a empresa errou, tem que pagar. Tem que ser o custo. 

ConJur — No caso do STJ, considerou-se a situação como excepcionalíssima. Isso desvirtua a discussão? 
Luís Adams —
 O plano excepcional é baseado na casuística, que favorece situações que se repetem. Então procura-se resolver um problema e acaba gerando dois. É um pouco como o Brasil funciona. As regras têm que ser aplicadas com racionalidade e a exceção tem que ser muito bem distinguida. Não digo que não possa existir. No sistema americano, por exemplo, existem situações de distinção por vinculação do precedente. Mas não pode acabar com a adoção indiscriminada disso, que acaba com racionalidade legal e torna o Judiciário vítima. Vira uma roleta russa. 

ConJur — Quando o sr. esteve na Advogado-Geral da União e era da PGFN, sempre defendeu a solução de conflitos por acordos. Continua tendo essa preferência?
Luís Adams —
 É uma forma de controlar riscos. Por que vocês acham que 80% das questões dos Estados Unidos, inclusive as tributárias, não são judicializadas? Porque fizeram a conta. O problema é quando há essas soluções intermediárias para compor situações absurdas. E é um absurdo porque é uma resultante de um absurdo anterior, da falta de bom senso, de atenção, de cuidado dos atores que geraram aquele resultado, aquele processo. 

No acordo eu pondero riscos. O Brasil tem uma dificuldade em entender isso. Não existe risco, até porque um processo judicial pode ser resolvido daqui a 30 anos. Objetivamente, não tem risco agora, que eu posso suspender, afasto a liminar, posso afastar o risco. Na Europa, por exemplo, tem um prazo definido para a duração razoável do processo, é um princípio constitucional. Então, se o Estado demora mais de quatro anos para resolver um processo, ele tem que indenizar.

ConJur — Se fizer isso no Brasil...
Luís Adams —
 Vai ter que indenizar todo mundo. Ou então o Estado começa a mudar de comportamento. O processo de decisão do Estado é uma coisa doida. O processo vai caminhando para uma conclusão e de repente aparece alguém (que deve ser o gênio da República porque ninguém mais viu, só ele) e diz que não deve ser feito de tal forma. E aí não chega a uma conclusão e ninguém consegue derrubar aquilo. 

Existe um problema no Brasil que atinge diretamente a ideia de sucumbência: é o princípio do lucro razoável. Ninguém pode lucrar no Brasil. Somos um país que se diz capitalista, mas o lucro aqui tem que ser razoável. Aí entra na sucumbência e questionam se você trabalhou por isso, se você merece isso, mas ninguém questiona o tempo, quantos advogados passaram anos de processo, quantos peritos e recursos foram utilizados. Como que não vai remunerar isso? 

O valor é alto? Não importa, tem que ver o que é devido! Pode ser que seja demais, mas a lei procura estabelecer isso. Toda negociação moraliza o Estado, e ele tem que ponderar os riscos de recorrer. Muitas vezes, esses valores altos são fixados na primeira instância com base na percepção do juiz, e aí tem que recorrer. O advogado é forçado a recorrer porque tem sucumbência já na primeira instância muito alta. 

ConJur — Qual é o foro adequado para discussão dos honorários? Tramita no STF uma ADC e há alguns casos no STJ. Em um deles, a ministra Nancy disse que a ação da OAB no STF busca impedir que o STJ defina sobre os honorários privados.
Luís Adams —
 Depende, cada foro é independente. A OAB está tentando confirmar a lei na perspectiva constitucional e isso não é uma limitação do STJ em si, porque ele continua interpretando a lei independentemente da questão do Supremo. O que o STJ pode fazer é dizer que essa lei não se aplica, apesar da lei dizer que sim. Quer dizer, busca-se interpretações extralegais para justificar a decisão, e aí remete-se à norma maior, que é a Constituição. Esse é um ponto. 

Gosto muito da ministra Nancy, por quem tenho muita admiração, mas não acho que a discussão no STF seja uma limitação à do STJ. Essa lógica [dos honorários] que foi aprovada pelo Congresso é resultado de um processo altamente negociado dentro do governo, que é para quebrar exatamente essa cultura e que procura dar o mínimo de racionalidade para o processo. Do ponto de vista da sucumbência, quem é prejudicado no Brasil não são os grandes escritórios, mas os médios e pequenos. 

A única forma de afastar uma lei no Brasil é dizer que ela é inconstitucional. Se eu estou dizendo que a lei se aplica aqui, então ela é baseada na própria interpretação legal ou essa interpretação remete a uma discussão constitucional. Evidentemente, o STJ ou qualquer tribunal pode fazer uma interpretação constitucional, mas nesse caso o assunto é sobre questões constitucionais e teve que ir para o Supremo, que tem a prerrogativa. 

A rigor, é preciso dar racionalidade ao processo. Se o Judiciário não puder confirmar o que está na lei e que foi objeto de negociação, ele estará dando um tiro no próprio pé. Ele está tirando o elemento de risco do processo e trazendo para o Judiciário o ônus de deliberar ou de ponderar o que quer, com todas as consequências disso.

ConJur — Qual sua opinião quanto a tabela de honorários ser centralizada pelo Conselho Federal da OAB?
Luís Adams —
 O Brasil é muito grande, nós estamos em um continente e o Conselho Federal dificilmente vai entender o que acontece no interior do Amapá, por exemplo. O problema da tabela de honorários é que é um padrão de remuneração para evitar o uso distorcido de honorários como captação de clientes até tirando outros profissionais do ramo. Estabelecer esse parâmetro dentro da região é importante, ou seja, com as seccionais.  

Querer centralizar as coisas é praticamente certeza de erro. É preciso reconhecer o valor da decisão local, apreciar esse valor e prestar auxílio. Temos que respeitar mais as diferenças e apreciá-las melhor: elas trazem informações relevantes e percepções de realidade que não conhecemos.

 





    

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