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A transposição da Justiça para dentro da internet marcou o ano que passou pela sua emergência. Já 2021 deve ser dedicado ao conserto dos desajustes provocados pelo estado de calamidade. Para o advogado Ricardo Tosto, ex-presidente da Comissão de Modernização do Judiciário e da Comissão de Reforma do Judiciário da Ordem dos Advogados do Brasil, secção São Paulo (OAB-SP), os escritórios e tribunais que estavam preparados, do ponto de vista tecnológico, registraram boa performance. Para o sócio fundador do escritório Leite, Tosto e Barros Advogados, a digitalização de processos, a adequação de audiências virtuais e o investimento em segurança da informação são os principais desafios do ano que se inicia.
Qual foi o desafio do Judiciário no ano que passou?
Ricardo Tosto — A transposição da Justiça para o ambiente da internet foi o maior desafio, claro. Foi preciso acelerar mudanças que vinham sendo feitas sem urgência — como a adoção das audiências virtuais, que aumentaram a complexidade da defesa. Esse processo todo não se concluirá tão cedo. Talvez não termine nunca. No mais, as coisas andaram bem no Judiciário. Os tribunais registraram boa performance e recordes de produtividade. O Tribunal de Justiça de São Paulo e o Superior Tribunal de Justiça fizeram, dentro do possível, um trabalho poderoso. O TJ-SP, sob a gestão do presidente, Geraldo Francisco Pinheiro Franco; e do corregedor Ricardo Mair Anafe. E, em Brasília, o STJ, na gestão do ministro João Otávio de Noronha, sucedido pelo ministro Humberto Martins.
Poderia explicar melhor o desafio da digitalização dos processos?
Ricardo Tosto — O TJ-SP, por exemplo, conduz hoje aproximadamente 25 milhões de processos, segundo o Conselho Nacional de Justiça. Desse volume, 25% ainda são processos físicos, são mais antigos e casos que preocupam porque incluem disputas; como afirma a ministra Nancy Andrighi, referem-se a “processos de dor” sobre Direito de Família, guarda de menores e pensão alimentícia que ficaram parados em 2020 — não por culpa do Judiciário. Com os fóruns fechados e a maioria dos servidores trabalhando em esquema de home office, não havia como movimentar esses processos.
Por isso, a mobilização da advocacia, junto aos tribunais, deve ser para que se digitalizem todos os processos — e o governo não destinou qualquer verba para isso. Fala-se muito que o Judiciário custa caro, mas é um nível de custo compatível com os serviços que presta. Em qualquer lugar do mundo o Judiciário custa caro, incluindo países como Estados Unidos, Inglaterra e França. Para contribuir com a resolução do problema, escritórios de advocacia, como o nosso, trabalharam para digitalizar alguns processos e devolvê-los para o juiz e à outra parte. Ou seja, é uma responsabilidade que pode ser assumida por todos. Justiça não custa. Justiça vale. Engana-se quem pensa o contrário.
E as audiências virtuais, funcionaram?
Ricardo Tosto — É difícil para o advogado despachar à distância com o juiz. Para o advogado, é importante o feeling, observar as reações dos magistrados aos argumentos que expõe durante a audiência ou nas sustentações orais. Não tenho dúvida de que muitos procedimentos, daqui para frente, serão virtuais. Mas alguns tipos de audiências, como criminais, não funcionam em absoluto no formato virtual. A solução será entender quais procedimentos funcionarão bem virtualmente e quais não. As audiências de conciliação, por exemplo, podem continuar virtuais. São conversas para se chegar a um acordo. Não há prejuízo em fazê-las pelo ambiente virtual. Essa determinação já seria uma forma de reduzir o número de audiências presenciais.
Às vezes também ocorre de o advogado despachar com um magistrado que está em local com sinal fraco de internet e o sistema cai. Se o sistema cai durante uma conversa com o desembargador, é bem difícil retomar o raciocínio na volta. Mas vimos esforços, neste sentido, por parte de juízes e cartórios. No nosso escritório, chegamos a despachar com um juiz (claro que em comum acordo) ao telefone, via Whatsapp, enviando um vídeo com nossos argumentos. Foi a maneira que se encontrou para se resolver um caso empresarial bastante importante, considerando as dificuldades do momento.
E para as empresas e escritórios de advocacia, em geral, como se vive esse cenário de trabalho?
Ricardo Tosto — Precisamos falar sobre a depressão que afligiu muitos profissionais. Muita gente até começou a calamidade com pique total, batendo recordes de produtividade no trabalho remoto. Isso foi caindo com o decorrer dos meses. Já há empresas com áreas internas dedicadas à saúde mental das equipes. O home office não é a saída para tudo. Aqui, de novo, sugere-se a solução híbrida de comunicação presencial e virtual, já que voltar ao formato totalmente presencial será bem difícil rapidamente. Lembro que a advocacia é uma profissão da área de humanas, de contato, de feeling, de conversa olho no olho, de interação. Exige-se relacionamento nesta carreira.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, anunciou que em 2020 julgou mais casos que o volume de casos recebidos, superando a “meta 1” estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Como avaliar esse resultado?
Ricardo Tosto — Certamente é um indicador positivo. Foi possível atingi-lo, na minha opinião, porque o STJ estava pronto na área de tecnologia com 100% do seu acervo digitalizado. Os tribunais têm que investir muito em tecnologia. Esse é o futuro. Nesse sentido, o ministro Noronha, ex-presidente do órgão, fez um trabalho fantástico, que continua na gestão do ministro Humberto. Os sistemas do STJ, diferentemente do que costuma acontecer, não tiveram tantas quedas.
Do ponto de vista do cliente, o que mudou? Pode-se falar em inovações?
Ricardo Tosto — A tecnologia contribuiu muito com o relacionamento com o cliente, mas há casos nos quais o cliente quer encontrar o advogado. Tem gente que tem dificuldade de contar, via plataforma virtual, o problema pelo qual está passando. As relações humanas são extremamente valiosas, apesar de todas as precauções necessárias por causa da Covid-19.
No nosso escritório, implantamos todos os cuidados para evitar a transmissão e contágio, inclusive priorizando o trabalho remoto. Cheguei a ter reunião com o cliente sentado, na outra ponta da mesa, por pedido do próprio cliente. Todos usando máscara e com os demais cuidados, naturalmente.
O que esperar de 2021?
Ricardo Tosto — Em 2021, o Judiciário será muito acionado por casos oriundos de um resquício da calamidade. Além de manter a eficiência vista em 2020 e trabalhar para a superação dos desafios que citei anteriormente, como a total digitalização dos processos e o aprimoramento das audiências virtuais. Será necessário muito investimento governamental em segurança da informação no Judiciário, considerando ataques recentes que vimos. Escritórios de advocacia também terão que investir nesse sentido. Será um desafio no mundo todo. Espero que possamos fazer história tanto na gestão como na criatividade para vencer os obstáculos impostos por esse vírus.
Entrevista reproduzida da Revista Lide e feita por Willian Fernandes.