Que Estado Queremos
Em setembro do ano passado, o governo de Jair Bolsonaro encaminhou ao Congresso Nacional a PEC 32/2020, da Reforma Administrativa. A proposta é polêmica e tem deixado muita gente preocupada. Mas o que podemos aprender com a experiência da Europa nesse assunto?
Os principais pontos dessas reformas foram apresentados em artigo para o Estadão por Regina Coeli Moreira Camargos (Dieese) e José Celso Cardoso Jr. (Ipea), e estão no livro Public Sector Shock. The impact of policy retrenchment in Europe, organizado por Daniel Vaughan-Whitehead, economista sênior da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Nos países mais desenvolvidos da Europa, a consequência mais observada foi uma retração do Estado na prestação de serviços à sociedade. Nos países menos desenvolvidos, houve reformas abruptas e mesmo a extinção de áreas do Estado nos sistemas de bem-estar social.
Consequências observadas na Europa
Em alguns casos, observou-se uma piora na oferta e realização de serviços públicos e, em todos os casos, houve redução do número de servidores, piora das condições de trabalho, precarização das contratações, demissões e remunerações. “Em suma, observou-se generalizado aumento da desproteção social e da insegurança laboral no setor público em todos os países”, dizem os autores.
As reformas foram abrangentes, profundas e velozes, promovendo cortes indiscriminados no orçamento, que resultaram no congelamento do investimento em áreas como previdência, saúde e educação.
Daniel Vaughan-Whitehead afirma que elas foram mais abrangentes em países menos desenvolvidos da União Europeia. Em países como Grécia e Portugal, tiveram caráter mais fiscalista e privatista. Alemanha, Suécia, Reino Unido e França, que vinham implementando reformas estruturais desde os anos 80, aprofundaram o ajuste quantitativo do setor público e a privatização dos seus respectivos sistemas de proteção social, embora tentando manter alguma regulação estatal sobre eles para mitigar a diminuição da coberta e da qualidade do atendimento às demandas da sociedade por serviços essenciais.
Para o autor, a Europa não alcançou bons resultados. A longo prazo, as medidas adotadas resultaram em custos elevados, aumento das desigualdades e a redução do dinamismo econômico.
Os países menos desenvolvidos, que foram pressionados por organismos internacionais a realizar ajustes mais severos, tiveram resultados ainda piores. Mas em ambos os casos, as reformas aprofundaram problemas que já existiam antes.
Dentre as principais consequências desse tipo de reformas administrativas se destacam:
i) Aumento dos conflitos trabalhistas no setor público;
ii) Achatamento salarial nos níveis hierárquicos mais elevados da administração pública, o que tem levado a uma onda de aposentadorias precoces e desligamentos voluntários de profissionais mais qualificados;
iii) Redução expressiva das diferenças salariais entre servidores de carreira e funcionários das prestadoras de serviços e organizações sociais nos níveis hierárquicos menos graduados da administração pública, em detrimento dos primeiros, o que tem gerado desmotivação e queda na produtividade sistêmica;
iv) Substituição gradativa, mas contínua, de servidores com contratos a prazo indeterminado por outros com contratos temporários e a tempo parcial;
v) Aumento das desigualdades salariais de gênero, pois os cortes e congelamentos de salários, benefícios e promoções afetaram sobremaneira as categorias funcionais com maior participação de mulheres, como saúde, educação e serviços de assistência social;
vi) Queda na qualidade dos serviços públicos oferecidos à população, devido ao rebaixamento das condições de trabalho dos servidores, aumento das jornadas de trabalho, demissões e aposentadorias precoces, congelamento das promoções e progressões funcionais e redução dos investimentos em infraestrutura, qualificação e treinamento;
vii) As reformas fiscalistas do setor público foram frequentemente acompanhadas por campanhas de desqualificação dos servidores, imputando-lhes privilégios inaceitáveis num contexto de crise geral do mercado de trabalho;
viii) O rebaixamento salarial e das condições de trabalho no setor público está prejudicando a luta por direitos trabalhistas na iniciativa privada, pois o estatuto de proteção social ao trabalho no Estado sempre foi uma referência importante para o sindicalismo no setor privado;
ix) O rebaixamento das condições de trabalho de servidores públicos mais qualificados no leste europeu está estimulando movimentos migratórios desses profissionais para países mais desenvolvidos do continente; e
x) Na maioria dos países, as reformas foram realizadas sem qualquer negociação com servidores e demais segmentos da sociedade afetados por elas, exceção feita àqueles que tinham práticas mais longevas e consolidadas de diálogo social. Ademais, observaram-se restrições ao direito de greve e de negociação coletiva que resultaram em intensificação dos conflitos trabalhistas e queda nas taxas de sindicalização no setor público.
Não houve mais eficiência ou efetividade da máquina pública
Sendo assim, ao contrário do discurso de quem defende a reforma, essas mudanças não resultaram em mais eficiência ou efetividade da máquina pública, na Europa. O autor também menciona que os cortes no investimento público em áreas como tecnologia da informação, segurança e sistemas de justiça estão levando, respectivamente, à fragilização dos sistemas nacionais de estatísticas, ao aumento da violência e da corrupção endêmica.
Daniel Vaughan-Whitehead defende que esses tipos de reforma devem ser muito bem embasadas por estudos de impacto, algo totalmente ausente na proposta do governo brasileiro. A reforma administrativa da equipe de Paulo Guedes tramita hoje no Congresso como um tiro no escuro.
Ele também ressalta a importância da participação da sociedade civil, sindicatos de servidores, conselhos de usuários e concessionários de serviços públicos como fiscalizadores da implementação dessas mudanças.
Como a reforma deveria ser pensada
Diante disso, Vaughan-Whitehead sugere uma proposta diferente para reformar o setor público, baseada nas seguintes premissas:
i) Incrementalismo, evitando-se mudanças abruptas e disruptivas;
ii) Diálogo social permanente;
iii) Reformar com base em evidências, no planejamento, monitoramento e avaliação permanentes;
iv) Fortalecimento do Estado Social; e
v) Revisão profunda da teoria e política econômica dominante, notadamente no que se refere ao peso e papel das finanças públicas no processo de financiamento do desenvolvimento nacional em cada caso concreto.
“Nada garante que os maus resultados ali observados não sejam aqui replicados, com o agravante de que, no Brasil, pretende-se desmontar estruturas estatais que sequer haviam sido plenamente implantadas desde a reforma administrativa republicana e democrática sugerida pela Constituição Federal de 1988”, concluem Camargos e Cardoso Jr.