Por: Thiago Rego de Queiroz
Enviada ao Congresso Nacional, em 3 de setembro de 2020, a proposta de Reforma Administrativa (PEC 32/2020) ainda aguarda despacho da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados. Desde a sua chegada, existe um dilema levantado pelo deputado Rodrigo Maia (DEM/RJ), presidente da Casa e um dos maiores entusiastas da proposta, quanto ao rito de tramitação que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 32/2020 terá – se iniciará sua tramitação pela Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania (CCJC) ou por meio de uma Comissão Especial a ser instituída.
A estratégia levantada por Rodrigo Maia, na data de entrega da Reforma Administrativa e reiterada na última quinta-feira (08/10), em evento da Frente Parlamentar da Reforma Administrativa, seria a realização do apensamento da PEC 32/2020 em alguma outra PEC que tenha correlação e que já tenha sido admitida pela CCJC, estando pronta para análise de mérito em Comissão Especial. A medida visa superar questões políticas1 que envolveriam a reinstalação da CCJC na atual sessão legislativa, uma vez que as Comissões Permanentes da Casa não foram reinstaladas em 2020 e estão impedidas de funcionar durante a emergência de saúde pública que envolve a Covid-19, conforme estabelece o art. 2º, § 1º da Resolução da Câmara dos Deputados n.º 14/2020, que instituiu o Sistema de Deliberação Remoto (SDR).
Atualmente existem ao menos sete PECs, que alteram artigos correlatos à PEC 32/2020, tais como os arts. 37, 39 ou 41 da CF, e que poderiam ser utilizadas para tal artifício, são elas:
- a PEC 219/2012, da então deputada Andreia Zito (PSDB/RJ), que dá nova redação ao art. 37, inciso XVI, letra "b" da Constituição Federal, para permitir que servidores públicos das carreiras administrativas possam exercer o cargo de professor;
- a PEC 284/2013, do então senador Pedro Taques (MT), que altera o inciso I do 37 da Constituição Federal, para vedar a designação para função de confiança ou a nomeação para emprego ou para cargo efetivo ou em comissão de pessoa que esteja em situação de inelegibilidade;
- a PEC 169/2019, do deputado Capitão Alberto Neto (Republicanos/AM), que altera o 37 da Constituição Federal, para permitir a acumulação remunerada de um cargo de professor com outro de qualquer natureza;
- a PEC 179/2012, do deputado Roberto de Lucena (PODEMOS/SP), que dá nova redação ao art. 37, inciso XVI, da Constituição Federal, para dispor sobre a possibilidade de acumulação de cargo de policial com a de um cargo de professor ou de um cargo privativo de profissionais de saúde, e define os cargos de policial estadual e federal e os cargos de guarda municipal como cargos técnicos ou científicos;
- a PEC 170/2003, do então senador Mozarildo Cavalcanti (RR), que altera o caput do art. 37 da Constituição Federal, para incluir, dentre os princípios que regem a Administração Pública, o princípio da razoabilidade;
- a PEC 441/2005, do então senador Rodolpho Tourinho (BA), que disciplina a fixação do limite remuneratório para os agentes públicos dos Poderes Legislativo e Executivo dos Estados e do Distrito Federal, determina a aplicação do disposto no art. 7º da Emenda Constitucional nº 41, de 2003, às pensões derivadas dos proventos de aposentadoria dos servidores públicos que se aposentarem na forma do caput do art. 6º da mesma Emenda, e disciplina a forma de contribuição dos servidores portadores de doença incapacitante para o custeio da Previdência (Desmembramento da PEC 227/2004); e
- a PEC 85/2011, do então deputado Lelo Coimbra (MDB/ES), que altera o art. 39 da Constituição Federal, incluindo o § 9º, que veda o pagamento de subsídio mensal e vitalício aos ex-chefes do Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios.
Diante do cenário supracitado, este artigo tem o objetivo de analisar os aspectos formais e políticos que envolvem a estratégia.
Inicialmente, do ponto de vista formal, cumpre salientar que a Constituição Federal de 1988 é classificada como rígida e, portanto, necessita de procedimento especial e solene para a sua modificação, não admitindo ser alterada da mesma forma que outras espécies normativas. Neste sentido, o art. 60 da Constituição: i) autoriza rol limitado de legitimados para proporem a deflagração de seu processo legislativo (incisos I a III); ii) estabelece limitações circunstanciais para a realização de mudanças constitucionais (§ 1º); iii) circunscreve quórum qualificado de 3/5 para aprovação, com votação em dois turnos em cada Casa do Parlamento (§ 2º); e iv) veda a deliberação de propostas tendentes a abolir as chamadas cláusulas pétreas (§ 4º).
É neste contexto que o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD) destina um capítulo específico para as Propostas de Emenda à Constituição no Título VI, “Das Matérias Sujeitas à Disposições Especiais”. Assim, como regra, as PECs devem iniciar sua tramitação pela CCJC, conforme determina o art. 202, do RICD. O referido dispositivo determina que “a proposta de emenda à Constituição será despachada pelo Presidente da Câmara à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, que se pronunciará sobre sua admissibilidade”, ou seja, para exame de eventual ofensa às limitações materiais de que tratam o art. 60, § 4º da Constituição Federal, que impede a deliberação de proposta tendente a abolir: i) a forma federativa de Estado; ii) o voto direto, secreto, universal e periódico; iii) a separação dos Poderes; e iv) os direitos e garantias individuais.
Posteriormente, se admitida pela CCJC e nos termos dos §§ 2 e 3º do art. 202, do RICD, o Presidente designará Comissão Especial para o exame do mérito da proposição, a qual terá o prazo de quarenta sessões, a partir de sua constituição para proferir parecer. Somente nesta etapa poderão ser apresentadas emendas à proposta, nas primeiras dez sessões.
Todavia, o § 8º do art. 202 do RICD permite que as disposições regimentais relativas ao trâmite e apreciação dos projetos de lei possam ser utilizadas supletivamente às PECs, desde que não colidam com as normas estipuladas pelo próprio art. 202. Assim, seria aplicável o disposto no art. 139, inciso I, do RICD, que determina que “antes da distribuição, o Presidente mandará verificar se existe proposição em trâmite que trate de matéria análoga ou conexa; em caso afirmativo, fará a distribuição por dependência, determinando a sua apensação”, desde que a tramitação conjunta ocorra “antes de a matéria entrar na Ordem do Dia” ou, para proposições de caráter conclusivo2, “antes do pronunciamento da única ou da primeira Comissão incumbida de examinar o mérito da proposição”, nos termos do art. 142, parágrafo único, do RICD.
Com fundamento nos dispositivos regimentais supracitados, é que existem precedentes no sentido de se permitir o apensamento de PECs, ainda que em estágios distintos de tramitação, como foram os casos: 1) da PEC 434/20143, que foi apensada no dia de sua apresentação à PEC 170/20124, que já se encontrava pronta para a pauta no Plenário da Câmara dos Deputados, de maneira que ela foi dispensada da análise da CCJC e da Comissão Especial; e 2) da PEC 507/20105, que aguardava análise em Comissão Especial e foi apensada à PEC 183/19996, que, por sua vez, já se encontrava pronta para a pauta no Plenário da Câmara. Ressalte-se que em ambos os casos, bem como em outros precedentes identificados, houve a anuência dos líderes partidários para o movimento, uma vez que não foram realizados questionamentos ou formulado recurso ao Plenário, conforme prevê o art. 142, inciso I, do RICD.
Entretanto, é imperioso registrar que nenhum dos precedentes encontrados versam sobre a dispensa de análise sobre a admissibilidade, pela CCJC, de PECs que tenham tamanha complexidade e magnitude, como é o caso da PEC 32/2020, que promove ampla Reforma no Texto Constitucional, com implicações para os três Poderes e para todos os entes da Federação – modificando ou acrescentando 17 artigos, para dispor sobre: i) princípios da administração pública, ii) vínculos, forma de ingresso no serviço público e jornada de trabalho, iii) acumulação de cargos, iv) direitos e vantagens, v) contratos de gestão, vi) instrumentos de cooperação entre entes públicos ou privados, vii) regime jurídico dos servidores públicos, viii) estabilidade no serviço público, ix) competências do Poder Executivo, entre outros aspectos.
Diante do atual cenário, é pouco provável que uma manobra que tenha o objetivo de suprimir qualquer etapa de tramitação da PEC 32/2020 consiga prosperar sem que haja um amplo entendimento entre as lideranças partidárias, de modo a afastar eventuais questionamentos ou mesmo a judicialização da proposta por aqueles que tenham objeções quanto ao seu conteúdo.
Nessa esteira, o presidente Rodrigo Maia teria que realizar concessões às lideranças partidárias refratárias à proposta, notadamente aos partidos de oposição, quanto: ao prazo de emendamento (a dilatação do prazo para apresentação de emendas à proposta no âmbito da Comissão Especial); ao início do processo de discussão e votação (adiamento do início do processo de discussão e votação da proposta em Comissão Especial, deixando para 2021); e/ou ao conteúdo (oferecendo apoio para atenuar os impactos da proposta).
Ademais, podemos acrescentar ao menos outros quatro elementos dificultadores, no âmbito da esfera política, para a execução da empreitada: 1) o exíguo calendário legislativo em 2020, achatado pelas eleições municipais, que atualmente impõem ao Congresso Nacional o funcionamento através de um calendário de esforço concentrado, para votação de temas específicos até meados de novembro; 2) a deflagração do processo político de sucessão das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, o que dificulta a construção de acordos por parte de um presidente em final de mandato; 3) o grande contingente de matérias inadiáveis aguardando votação nos meses de novembro e dezembro – vetos presidenciais que trancam a pauta do Congresso, o PLDO, o PLOA, ao menos 10 MPs7, bem como de matérias sobre à Covid; e 4) temas que venham a ser priorizados pelas lideranças partidárias, como pode ser o caso da PEC 188/2019, conhecida como PEC do Pacto Federativo, atualmente em tramitação no Senado.
Como se percebe, são estes os dilemas enfrentados pelo presidente da Câmara dos Deputados, que se esforça para viabilizar o início do debate sobre a Reforma Administrativa em 2020, em sinalização aos anseios do Mercado Financeiro, mas que apenas será exitoso se houver concessões aos partidos de oposição, razão pela qual a tendência continua sendo de tramitação apenas em 2021.
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Thiago Rego de Queiroz: Advogado, consultor, analista político e sócio-diretor da Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais.