A pandemia que assola o Brasil desde março exigiu medidas de desburocratização de compras de equipamentos médicos, remédios e de contratações para construções de hospitais de campanha. A flexibilização, no entanto, pode ser aproveitada para objetivos diversos do combate da Covid-19 — e nada republicanos.
Para o novo presidente da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape), Vicente Martins Prata Braga, quando o fim do estado de calamidade vier, pode trazer à superfície o que chamou de um legado de corrupção. “Tenho um grande receio dessa pandemia deixar um legado de corrupção maior que a Lava Jato”, enfatiza. O mandato de Braga é para o triênio 2020-2023.
Uma das formas de evitar que isso aconteça seria, segundo defende, dar autonomia à carreira de procuradores estaduais. Dessa forma, advogados públicos poderiam atuar de forma mais combativa em relação a desvios, processos irregulares e sem interferências políticas.
“Naqueles estados que temos uma atuação efetiva da advocacia pública estadual, uma atuação preventiva, a gente não assiste a essas operações”, diz, se referindo às investigações que alguns estados já enfrentam. “A conclusão não pode ser diferente no sentido de que os estados que estão tendo uma atuação mais proativa das procuradorias estaduais têm maior controle do uso da verba pública e evitam essas notícias que ninguém quer assistir.”
Outra questão que está na ordem do dia e que também impacta diretamente o trabalho de procuradores estaduais são as reformas tributária e administrativa. Se, por um lado, eles defendem uma simplificação tributária, temem perder atribuições para lidar com a arrecadação própria. Neste caso, a entidade pretende incidir no Congresso para debater os pontos sensíveis com os parlamentares.
Além disso, a reforma administrativa, ainda sem proposta apresentada, desperta uma preocupação sobre a perda da estabilidade do funcionalismo público. “A estabilidade não é uma garantia apenas do servidor público. É uma garantia da sociedade como um todo”, defende.
Leia a íntegra da entrevista:
Uma das bandeiras mais caras aos procuradores de Estado é a autonomia. O que mudaria, na prática, se a conquistassem?
É uma das nossas bandeiras e um dos motivos que nos faz lutar por ela é acreditar que a sociedade, como um todo, terá um ganho efetivo ao ter uma Procuradoria de Estado, uma advocacia pública autônoma, que busque atender os interesses da sociedade, independentemente de interesses de governo que não sejam interesses legítimos.
Os interesses dos estados, de forma ampla, devem ser respeitados e atendidos quando não houver convergência com os interesses do governo. A advocacia pública autônoma significa uma sociedade mais fortalecida, melhor protegida, com a implantação de políticas públicas que digam respeito efetivamente àquilo que a sociedade busca. E significa uma trincheira maior na parte preventiva à corrupção. Então, a gente tem um ganho para a sociedade como um todo.
Poderia dar exemplos do efeito da ausência autonomia?
Você vê agora o que está ocorrendo na União, por meio da crítica que a AGU vem sofrendo em razão de ter ingressado com algumas ações no Supremo que supostamente buscam atender a interesses do governo, da Presidência da República, e não interesses da União, do Brasil como um todo. Esse é um exemplo no âmbito da União. No âmbito dos estados, infelizmente não consigo te dizer um caso concreto, porque isso ocorre nos bastidores. Ocorre muito na surdina. São interferências políticas que não são tão republicanas, não ocorrem no clarão do dia. A gente tem ali às vezes um pedido para alterar um parecer, coisas do tipo.
Diante do peso que tem o ICMS para a gestão dos estados, a categoria pretende atuar na discussão da reforma tributária?
Vamos discutir ativamente a reforma tributária junto ao Congresso Nacional para evitar o esvaziamento das atribuições dos estados. A partir do momento em que somos advogados dos estados, defendemos seus interesses e temos que ter papel ativo na discussão da reforma tributária.
Da forma como está sendo proposta, a reforma pode acabar com a guerra fiscal?
A partir do momento que se tenha um tributo único, o IBS (imposto sobre bens e serviços), o IVA (imposto sobre valor agregado), a nossa preocupação é que os estados não percam as suas atribuições, as suas competências tributárias de poder instituir os seus tributos de acordo com o que a Constituição já determina.
Lógico que queremos simplificar a figura do ICMS. O ICMS é um tributo muito complexo, que não existe em nenhum lugar do mundo, só existe no nosso país. A partir do momento que a gente consiga simplificar a aplicação para o dia a dia, para que o contribuinte possa entender melhor o papel do ICMS e a sua importância na arrecadação, a gente vai ter um ganho para a sociedade, mas isso não pode acontecer com a perda de competência tributária para os estados. Essa é a nossa preocupação.
Como está ali, diminuiria a guerra fiscal. Acabar, acho difícil. Porque com a instituição do tributo único, você vai ter diversas outras celeumas, como: a qual estado compete a arrecadação do tributo, qual é o titular do crédito ativo? Teremos várias e várias discussões sobre a forma como deve ser implementada. Ter um tributo nacionalizado, que não seria federal, mas nacional, é uma excelente saída. Mas a forma como deve ser feita essa nacionalização deve ser muito bem debatida.
A reforma administrativa também é um tema que interessa, que devem atuar ativamente?
É um tema que nos interessa muito. Estamos acompanhando as notícias porque até então não se tem nenhuma reforma efetivamente apresentada ao Congresso Nacional.
Esse tema é muito caro porque vemos vários pontos sensíveis ao funcionalismo público. A estabilidade não é uma garantia apenas do servidor público. É uma garantia da sociedade como um todo. A partir do momento em que eu tenho um servidor público estável, a sociedade ganha porque sabe que aquela pessoa não vai ser afetada por interferências alheias ao interesse público.
Se ela está praticando ilícitos, não está sendo uma boa servidora pública, deve-se instaurar um processo administrativo contra ela e, caso seja provado que não tem condições de exercer aquela atribuição, deve ser demitida. Mas não se pode acabar com a estabilidade como um todo como se aquilo fosse uma prerrogativa do servidor. É uma prerrogativa do servidor e, mais ainda, da sociedade.
Você imagine uma cidade do interior onde se tem uma briga política. Um lado ganha e ele vai demitir todos os servidores que foram contratados na gestão anterior, mesmo que por meio de concurso público. Se você não tiver uma garantia de estabilidade, isso vai ocorrer. A gente tem que lembrar que o Brasil é muito maior que a União. São mais de 5 mil municípios na nossa federação, e cada um deles vive uma realidade diferente.
Pelo menos 11 milhões de trabalhadores tiveram o contrato de trabalho suspenso ou o salário reduzido por causa da pandemia. Outros 7,8 milhões perderam o emprego. Há no Congresso uma proposta para reduzir salário de deputados e senadores. Como o senhor vê a possibilidade de uma proposta de redução de salário no Executivo?
O estado do Ceará, por exemplo, tem uma lei que veda a redução de salário de servidor no período da pandemia. O STF já decidiu que não cabe a redução salarial de servidor por conta da pandemia. Quem entende que servidor público deveria ter uma redução salarial porque não está trabalhando está completamente equivocado e alheio à realidade. Estamos trabalhando mais do que nunca.
Enquanto procuradores do Estado, por exemplo, estamos trabalhando para diminuir os efeitos da pandemia na sociedade, seja com a liberação de recursos bloqueados, seja com a liberação de EPIs, respiradores que não conseguiam ser comprados. A União requisitou toda a produção de respiradores do país no início da pandemia.
Já havia estados que estavam com contratos fechados com esses aparelhos. A advocacia pública entrou em campo com ações judiciais para reverter as requisições. O Ceará comprou milhões de EPIs, 600 respiradores, mas os produtos não estavam passando pela Anvisa. A advocacia pública ingressou com ações judiciais e conseguiu liminares para desburocratizar a liberação.
O ritmo de contaminação do coronavírus exigiu medidas rápidas dos gestores públicos. A flexibilização das normas para compras e contratações, a facilitação para licitações é o que provocaria esse legado de corrupção?
Tenho um grande receio de essa pandemia deixar um legado de corrupção maior que os casos investigados pela Lava Jato. Estamos trabalhando para evitar o desvio de recursos durante a pandemia. Tem uma grande preocupação com as dispensas de licitações que estão ocorrendo neste momento de pandemia.
Ainda existem pessoas mal intencionadas sentadas em cadeiras de poder. E a gente fica com grande receio de isso trazer mais prejuízo efetivo para a sociedade. Por isso a questão da autonomia. O procurador tem que ter a independência para dar a sua opinião de acordo com a sua consciência e ter a permissão de barrar uma compra de estados que estão fazendo compras equivocadas. Tivemos estados que fizeram compras de respiradores que nunca chegaram. Tivemos estados que compraram respiradores que, quando chegaram, não serviam, tinham defeitos. Tivemos estados comprando cestas básicas superfaturadas, que fizeram hospitais de campanha nunca utilizados, gastando milhões.
A flexibilização era medida extremamente necessária. A gente nem discute a necessidade. O que a gente discute é que ela não pode ser feita de qualquer forma. A qualidade de um processo administrativo de dispensa de licitação pode andar em conjunto com a eficiência e com a celeridade. Basta se fazer uma análise um pouco mais minuciosa, que vai demandar algumas horas, dias a mais de tramitação e que vai atender aos interesses do governante que é preocupado com os interesses da sociedade.
Como tem sido o dia a dia de trabalho das procuradorias diante da agilidade que a pandemia impõe para compras e contratações?
Em alguns estados estamos vendo, por notícias ou mesmo informações do Ministério Público, que algumas dessas contratações não estão passando pela advocacia pública. Nestes mesmos estados, estão ocorrendo operações da PF, da Polícia Civil para combater desvios, desmandos, malversações dos recursos públicos. Naqueles estados que temos uma atuação efetiva da advocacia pública estadual, uma atuação preventiva, acompanhando o processo de dispensa de licitação, a gente não assiste a essas operações. A conclusão não pode ser diferente no sentido de que os estados que estão tendo uma atuação mais proativa das procuradorias estaduais têm maior controle do uso da verba pública e evitam essas notícias que ninguém quer assistir.
Para além da autonomia, quais são as principais bandeiras da gestão?
Temos a bandeira dos honorários, que é de uma luta que já começou no segundo dia da nossa gestão. Tivemos o julgamento de algumas das ADIs que tratam a respeito da constitucionalidade ou não dos honorários e estamos nos saindo vencedores. O Supremo está reconhecendo a constitucionalidade, sim, dos honorários.
Outra bandeira é a da unicidade. O Supremo já julgou diversas ações reconhecendo que compete às Procuradorias-Gerais de Estado única e exclusivamente a defesa judicial e a consultoria dos estados. Isso vem sendo violado constantemente por diversos entes com a contratação de advogados sem concurso público, ou seja, não submetidos a um crivo de concurso público, de prova de títulos.
Outras ainda seriam de benefícios de conveniados, por meio da implantação de uma Escola Nacional da Advocacia Pública, para trazer melhores cursos de capacitação para os colegas nos diversos estados. Outra que é importante é a implementação das medidas alternativas de solução de conflitos, para tentar desjudicializar as demandas dos estados.
Os grandes litigantes do Poder Judiciário são os entes federados. De que forma a advocacia pública pode atuar para reduzir o volume de demandas levadas à Justiça?
A partir do momento que essas demandas são resolvidas extrajudicialmente, você traz um ganho efetivo para toda a sociedade, que vai ter um Judiciário mais célere, menos abarrotado e com a possibilidade de dar efetivo resultado para as demandas num curto espaço de tempo.
Alguns estados já criaram suas câmaras de mediação e conciliação administrativa. O Rio Grande do Sul foi um dos pioneiros, bem como Ceará e Bahia. Com elas, você vai evitar o ajuizamento de diversas e diversas demandas. No Ceará, a gente teve exemplos e um deles foi em 2014.
Não tinha ainda a câmara de conciliação e mediação no âmbito da Procuradoria do Estado, mas criou-se um programa para fazer desapropriações administrativas porque o estado ia fazer a revitalização do Maranguapinho, que é um rio que corta a cidade de Fortaleza e tinha suas margens ocupadas por pessoas carentes.
O ente público teria que ajuizar milhares de ações de desapropriação. E por um trabalho da Procuradoria, o governador à época editou uma lei, por meio da Assembleia Legislativa, permitindo que o estado desapropriasse essas áreas mesmo daquelas pessoas que não tinham título da terra. Ninguém tinha títulos naquela época, era tudo invasão. E a lei até então não permitia que você desapropriasse invasão.
A nova norma permitiu o pagamento de indenização para aqueles invasores e o ressarcimento por conta das benfeitorias que tinham sido feitas nos terrenos. Com isso, a gente deixou de ajuizar mais de 2 mil ações num curto espaço de tempo. Esse projeto da procuradoria ganhou o Innovare pelo trabalho de desapropriação humanizada.