*Conjur
Recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou em segundo turno a proposta de emenda constitucional que prevê mudanças na forma de pagamento dos precatórios e abre espaço no orçamento para a criação do programa Auxílio Brasil.
Um tema muitas vezes negligenciado, mas que entrou no vocabulário da população nos últimos meses, os precatórios são uma peça importante para analisar as movimentações governamentais e para entender alguns dos valores despendidos pelo Estado, mas ainda são tratados de forma muito confusa.
Para começar, devemos entender que os precatórios são títulos expedidos pelo Poder Judiciário que, após sentença transitada em julgado, reconhecem uma dívida de um ente público. Ou seja, é uma condenação que não permite mais recursos e que comprova que o Estado está em débito e emite um documento que "promete" o pagamento ao autor da ação.
O que parece um conceito simples se torna muito complicado quando acontece o momento de realizar o pagamento. Apesar do entendimento majoritário de que os precatórios constituem dívidas, os entes federativos o tratam como um gasto primário, submetendo os valores ao "teto de gastos", previsto pela PEC 95.
O texto da emenda traz a existência de limites para os gastos dos entes federativos com as chamadas despesas primárias. Tais gastos se caracterizam por aquelas necessárias para a promoção de serviços públicos. As dívidas que dão origem aos precatórios não são um serviço público, porém, têm sido enquadradas pelo Estado através da sua origem. Por exemplo, um precatório decorrente de dívida previdenciária tem sido tratado como despesa previdenciária. Um precatório decorrente de um valor devido para a saúde entra no orçamento como despesa com saúde. E assim por diante. Dessa forma, os entes federativos enquadram os precatórios como gasto primário, sujeito ao teto.
Ao enquadrar os precatórios como gasto primário, e consequentemente os deixando sujeitos a esse controle constitucional, o Estado busca formas de burlar, atrasar e parcelar os pagamentos, sempre com a justificativa de que não pode ultrapassar o limite imposto.
Aí entra o texto da proposta aprovada recentemente, chamada de PEC 23/21, que permite, em primeiro lugar, o adiamento do pagamento de parte dos precatórios devidos pelo governo. Isso se deve ao fato de o texto trazer um limite de gastos com precatórios por exercício. O dispositivo ainda altera a forma de correção (que passa a ser exclusivamente pela taxa Selic ao invés do IPCA, como era até então) e muda a forma de calcular o teto de gastos (não mais pela inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior, mas pela taxa apurada nos 12 meses até dezembro do ano anterior).
Com isso, o governo passa a ter nas mãos um salvo-conduto para atrasar o pagamento dos precatórios que ultrapassarem o teto estabelecido, criando a possibilidade de um "efeito bola de neve", em que os precatórios não pagos vão se juntando aos novos títulos reconhecidos pelo Judiciário, de forma que as dívidas estatais vão apenas aumentando, colocando em risco a integridade do orçamento a longo prazo.
A solução para os precatórios era mais simples do que toda essa manobra da PEC. Para evitar que os precatórios estejam sujeitos a esse teto bastava o reconhecimento da natureza jurídica deles como dívida, sendo matéria definida como "extrateto", uma vez que com isso não os colocamos fora do limite, mas, sim, concluímos que eles nunca estiveram sujeitos a ele. É importante ressaltar, o tempo de reclamar do precatório é antes do seu reconhecimento. No momento em que o Judiciário, através de sentença transitada em julgado, confirma a existência da dívida e cede o título do precatório, o Estado deve pagar sem reclamação.
Porém, com a PEC aprovada, as medidas definidas por ela acabam seguindo um caminho contrário à jurisprudência do STF, que costuma não permitir o parcelamento deste pagamento, bem como o uso da taxa Selic para sua correção. A votação na Câmara foi apertada, com 323 votos a favor e 172 contra (em primeiro turno a medida passou por 312 a favor e 308 contra), e assim a medida segue seu caminho legislativo em direção ao Senado, onde também passará por votação. Se aprovada, representará, a curto prazo, uma folga de R$ 47 bilhões já em 2022 para que exista dinheiro para realizar o programa social do governo.
*Texto do advogado tributarista, Francisco Gaiga.