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PEC dos Precatórios: pantomima vs. realidade


PEC defendida por Guedes e que institui calote vai na contramão de todos os avanços alcançados nos últimos anos
  21/10/2021



Jota*

A principal justificativa do ministro da Economia, Paulo Guedes, para instituir um calote aos precatórios devidos pela União tem sido o constante crescimento dessa categoria de despesas no orçamento. De fato, a tendência é que realmente essas despesas tendam a aumentar nos próximos anos. A pergunta que até agora não foi feita é: qual é o motivo desse aumento?

Na última década, foram notórios os esforços do Congresso Nacional e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para a criação de mecanismos legais aptos a garantir a celeridade na prestação jurisdicional. Há diversos estudos comprovando a direta correlação entre a celeridade e previsibilidade do Judiciário e o crescimento econômico. O recebimento da dívida pelo credor (seja quem for), no menor prazo possível, injeta novamente os recursos na economia e reduz os custos da máquina administrativa. A confiança nos mecanismos de cobrança é um dos fatores decisivos na atração de investimentos.

Em 2010, o Banco Mundial promoveu em Washington um evento sobre os desafios do mundo pós-crise, onde um dos painéis tratou da modernização do Judiciário brasileiro. Naquela oportunidade, o Banco Mundial reconheceu que o Brasil empreendeu uma “agressiva e bem-sucedida” reforma judicial a partir de 2005, com destaque à criação do CNJ, o gerenciamento administrativo das cortes, a digitalização dos processos judiciais e a criação das sistemáticas de recursos repetitivos e repercussão geral. Segundo relatório do banco, tais iniciativas “contribuíram substancialmente para a melhoria da cidadania, do ambiente para investimentos e para a redução da pobreza”. Nessa esteira, também foram implantados nos anos seguintes as metas de produtividade, multa na fase de execução, a regulamentação de acordos com a Fazenda, dispensa de recursos pela Fazenda em casos cuja tese já tenha sido definida em repetitivo ou repercussão geral, julgamentos virtuais, dentre várias outras.

O próprio governo, invertendo a narrativa ao seu bel prazer, reconhece o aumento da celeridade processual como uma das razões do incremento da arrecadação nos últimos anos. Os dados constantes do site do CNJ demonstram que a atuação judicial da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) garantiu o ingresso de aproximadamente R$ 80 bilhões ao governo em 2019. Recentemente, a Advocacia-Geral da União (AGU) divulgou uma economia de R$ 8,6 bilhões com 14.955 acordos firmados entre janeiro e agosto de 2020, o que representa o dobro do valor alcançado em 2020.

De outro lado, o governo atribui o aumento do orçamento à redução do tempo de tramitação processual. Na apresentação da PEC do calote na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a equipe econômica demonstrou que o tempo médio entre o ajuizamento da ação e a expedição do precatório caiu de 12 anos (2018) para sete (2022). A narrativa do governo é errática.

O parcelamento padece de qualquer motivação. Os regimes especiais contemplados aos demais entes federativos (estados e municípios) tiveram como fundamento o endividamento e falta de recursos para o adimplemento dos precatórios dentro do prazo constitucional. É uma realidade totalmente diversa da União, que acumula mais de R$ 1 trilhão em caixa e ainda goza da prerrogativa de endividamento para o pagamento dessas dívidas, caso necessário.

A alternativa proposta pela PEC 23/2021 em fixar um teto para dívidas judiciais usando a base desses gastos em 2016, corrigida pela inflação, é ainda pior. Na prática, a proposta limita o pagamento de precatórios no exercício de 2022 a R$ 40 bilhões, postergando os outros R$ 49 bilhões para os exercícios seguintes. Esses valores não serão contabilizados nem como dívida e nem como despesa. Pior: o texto não só limita o valor dos próximos anos, mas a própria expedição dos precatórios pelo Poder Judiciário. Estima-se que o efeito nefasto dessa fraude legislativa resultará no acúmulo de R$ 118,9 bilhões até 2025 e R$ 346,7 bilhões até 2030.

O princípio da legalidade previsto no artigo 5º da Constituição converteu-se atualmente no “princípio da reserva legal proporcional” (proporcionalidade), exigindo cumulativamente a: (a) constatação da necessidade de utilização da alteração normativa; (b) adequação dos meios utilizados e os fins perseguidos; e (c) razoabilidade (proporcionalidade em sentido estrito), que significa a “proibição de excesso”, limitando a produção de normas e a execução de atos eminentemente arbitrários, injustos ou irrazoáveis do poder público.

A PEC do calote vai na contramão de todos os avanços alcançados nos últimos anos. A sua anunciada inconstitucionalidade apenas servirá para retardar a pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) com o ingresso de infindáveis ações declaratórias de inconstitucionalidade, deixando ao largo tantas outras importantes e urgentes discussões, inclusive de interesse do próprio governo.

E onde estaria o verdadeiro problema? É simples: a inclusão dos precatórios no teto de gastos do orçamento. As despesas com o pagamento de precatórios são atípicas, e o governo não possui qualquer ingerência sobre elas. Trata-se de uma dívida líquida, certa e exigível, sujeita ao pagamento via sistemática de precatório e cujo inadimplemento caracteriza moratória e ineficácia da prestação jurisdicional. Somente na ficção da contabilidade público-orçamentária uma execução transitada em julgado não consubstanciaria uma dívida.

O caminho mais adequado seria aquele proposto pela PEC apresentada pelo deputado federal Marcelo Ramos (PL-AM), que altera a redação do § 6º do artigo 107 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para retirar da base de cálculo e dos limites do Novo Regime Fiscal as despesas com pagamento de condenações judiciais. A proposta corrige uma falha técnica da classificação de rubrica e ao mesmo tempo abre cerca de R$ 20 bilhões adicionais no orçamento a serem destinados aos programas governamentais. Preserva a imagem do país como bom pagador e o direito de milhares de credores (dentre eles, pensionistas, ex-funcionários públicos etc.) que aguardaram décadas para o recebimento dos seus créditos. Corrige uma distorção do sistema que inevitavelmente se repetirá em exercícios futuros quanto maior for a eficiência do processo judicial.

*Artigo do advogado Daniel Cardoso.





    

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