Conjur*
A novela em que transformou o debate sobre o pagamento dos precatórios pode parecer um assunto meramente técnico, teórico, mas esconde uma luta de poder que trará fortes reflexos eleitorais no próximo ano. Já expus em outro texto que se trata de uma questão de escolhas trágicas e que o envio do Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) pelo Poder Executivo ao Legislativo comprova que é possível incluir tanto a íntegra dos gastos com precatórios, quanto as demais despesas usuais que devem ser realizadas no ano de 2022. Ocorre que teremos eleições no meio do caminho e o foco é obter espaço orçamentário para as emendas de relator, que permitirão ao Poder Executivo, em conjunto com o Legislativo, gastar o dinheiro público em busca de reeleição.
Isso vem atormentando diversos atores políticos, jurídicos e econômicos em busca de soluções que sejam tecnicamente viáveis e façam caber no orçamento esse tipo de gasto, evitando a lambança feita em 2021. Diversas soluções já foram apresentadas, inclusive duas PECs, uma pelo governo Bolsonaro, que busca simplesmente dar o calote no pagamento dos precatórios acima de determinado valor, e outra pelo vice-presidente do Congresso, deputado Marcelo Ramos, que faz um recálculo dos gastos com precatórios desde 2016, de tal modo a respeitar a regra do teto de gastos.
É nesse contexto que surgiu uma novidade que vem avançando algumas casas nesse jogo. Em apertada síntese, o governo Bolsonaro agora busca manter determinado valor como precatório e pagá-lo em 2022, e remeter para pagamento no ano seguinte o que exceder a esse montante. É uma solução mágica, que aparentemente respeita o teto de gastos e cumpre as determinações judiciais de pagamento, apenas transferindo parte delas para o ano posterior.
Onde estão os erros? Existem vários; destacarei apenas três.
O primeiro erro está na falta de análise sobre o estoque da dívida com os precatórios. Deixemos de lado a análise estática, referente aos pagamentos para o ano de 2022, e observemos o processo em sua dinâmica. O que não tiver sido pago em 2022 se acumulará para pagamento em 2023, em conjunto com os demais precatórios que necessariamente serão remetidos pelo Poder Judiciário para inclusão no orçamento daquele ano (2023). O mesmo ocorrerá em 2024 e assim sucessivamente, com o efeito de bola de neve sendo aplicado anos a fio, de tal modo que chegará uma hora em que tal dívida se tornará impagável. A diferença é que o governo será outro, e o mico será transferido para o futuro governo.
Façamos um paralelo didático para facilitar a vida do leitor. Imagine uma fatura de cartão de crédito, em que o pagamento ocorra apenas pelo valor mínimo. O saldo da dívida vai se acumular, com juros, para a próxima fatura. Suponhamos ainda que o pagamento subsequente também ocorra pelo valor mínimo, havendo novo acúmulo de saldo, com juros. Não há dúvida que uma hora o valor estourará o orçamento do infeliz portador daquele cartão de crédito, que se argolará para quitar o débito.
A diferença para com o caso dos precatórios está em que o responsável pelo pagamento do cartão de crédito é sempre o mesmo, porém os débitos dos governos passam ao longo de quatro anos, e esta dívida é transferida para quem for (re)eleito. Logo, a irresponsabilidade fiscal é patente, e, neste caso, se está defronte a uma pedalada fiscal. Espanta-me que os arautos da responsabilidade fiscal de ontem estejam silentes em face das pedaladas que estão sendo propostas hoje.
A segunda irregularidade está no fato de que o saldo de precatórios passará de um ano para outro, porém com a mesma natureza jurídica original, isto é, trata-se de um montante de precatórios que não serão pagos no prazo determinado, e serão pedalados para o próximo ano. Ora, se na origem eram precatórios, e, após, permanecem sendo precatórios, esse fracionamento se caracteriza como um calote nos precatórios – a despeito de qualquer outro nome jurídico que venham a aplicar a esse saldo.
Assim, somado o primeiro erro, que é o das pedaladas, com o segundo, que é o calote, constata-se que a proposta do Governo Bolsonaro é uma operação inversa àquela prevista no art. 38 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que trata das AROs (Antecipação de Receitas Orçamentárias). Estão criando as PODO (Postergação de Despesas Orçamentárias) para adiar o pagamento de despesas obrigatórias de um ano para outro - com o perdão do trocadilho, tudo está sendo podado pelo atual governo.
O terceiro erro está no singelo fato de que precatório é uma despesa obrigatória decorrente de ordem judicial, que deve ser cumprida. Resumindo: (1) como despesa obrigatória tem que estar no orçamento; e (2) desobedecer a ordens judiciais de pagamento, mesmo que sob o desgastado nome de precatórios, é algo que abalará diversas Instituições: o Poder Judiciário, pois suas ordens serão descumpridas e o mercado, pois o Ministro Guedes pensa que suas manobras não estão sendo vistas pelos analistas, porém estes vêm acompanhando tudo com muita atenção.
Isso tudo levará inclusive os mais bolsonaristas operadores de mercado a pensar: se até mesmo ordens judiciais transitadas em julgado são descumpridas pelo Governo Bolsonaro, porque o compromisso de pagamento dos títulos do governo (LTNs e outros títulos do Tesouro Direto, por exemplo) permanecerão sendo pagos da forma contratada?
Enfim, o ministro Guedes inegavelmente é um homem do mercado, mas há tempos anda de namoricos, flertando com o lado autoritário do governo Bolsonaro. E, como todas as pessoas em situação semelhante, pensa que não está sendo visto — acha-se invisível. Como na música da Rita Lee, pensa estar no escurinho do cinema, ou em algum local pretensamente ermo — mas que seguramente está cheio de câmeras.
Sugiro fazer a coisa certa, tal como no filme do Spike Lee, que é pagar os precatórios na íntegra, como previsto no Projeto de Lei Orçamentária Anual que foi enviado. E manter-se invisível apenas para situações restritas, pessoais, sem correr o risco de afetar aos que o circundam.
Pois é: o calote e a pedalada nas dívidas com precatórios estão bem aí, para quem quiser ver.
*Texto do advogado e professor, Fernando Scaff.