Jota
Desde o dia 20 de março deste ano – quando o Congresso Nacional reconheceu o estado de calamidade pública, por intermédio do Decreto Legislativo – DL nº 6/2020 – foram suspensos os trabalhos de todas as comissões, permanentes e temporárias do Poder Legislativo, até que sejam retomadas as atividades regulares do Congresso Nacional.
No Senado Federal, a expressa previsão nesse sentido veio com a decisão do seu presidente no dia 22 de abril (com efeitos retroativos), em resposta à Questão de Ordem nº 1/2020, formulada pelo senador Angelo Coronel, tendo por objeto específico a CPMI das Fake News. Na prática, a decisão acabou servindo de fundamento para a paralização dos demais colegiados e também de outros órgãos fracionários, como o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar.
Com isso, somente há duas comissões em funcionamento no Congresso Nacional: 1) a comissão mista destinada a acompanhar a situação fiscal e a execução orçamentária e financeira das medidas relacionadas à emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus (Covid-19), criada pelo próprio DL nº 6/2020; e 2) a comissão mista da reforma tributária, cujo funcionamento também tinha sido suspenso em um primeiro momento, mas em 31 de julho de 2020 voltou a funcionar.
A decisão de suspender as comissões por conta da pandemia, sobretudo no primeiro momento, parece justificada. De fato, havia dificuldades suficientes inerentes à própria virtualização das deliberações, de modo que se mostrou razoável concentrar os esforços parlamentares no plenário, até mesmo como forma de promover maior rapidez das decisões urgentes naquele momento. Então, o funcionamento das comissões poderia acarretar atrasos indesejados nas respostas legislativas de enfrentamento à crise da pandemia.
No entanto, nem por isso a opção legislativa deixa de ser problemática sob alguns aspectos, os quais também precisam ser considerados, sobretudo agora, passado o ápice da crise e em razão do longo período sem a participação desses colegiados no processo de formação da vontade legislativa. Antes de abordar os problemas acarretados pela falta das comissões, convém fazer um breve resgate sobre a relevância delas no Poder Legislativo.
Com a atual CF, pela primeira vez estabeleceu-se a obrigatoriedade de as Casas Legislativas manterem tais colegiados especializados, conforme se depreende do art. 58: “O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação”.
Assim, o texto constitucional não deixou espaço para a não adoção dessa forma de organização dos trabalhos do Poder Legislativo. Apenas a disciplina do funcionamento e das atribuições das comissões é remetida aos interna corporis acta. Isso significa o reconhecimento constitucional da importância e da utilidade desses órgãos fracionários, sobretudo para o processo legislativo. Essa conclusão pressupõe alguns conhecimentos extrajurídicos e práticos sobre a dinâmica parlamentar e a organização interna do Poder Legislativo.
Em primeiro lugar, a necessidade de racionalização dos trabalhos legislativos. Ao serem formadas por um número relativamente pequeno de parlamentares, as comissões proporcionam a divisão de tarefas e otimização do trabalho. Órgãos muito numerosos como os Parlamentos têm inevitavelmente um processo decisório de custos elevados (quanto mais agentes envolvidos, mais difícil e demorado alcançar o resultado). Nesse contexto, sendo menores, as comissões facilitam a tomada de (algumas) decisões coletivas, mostrando-se essenciais para o regular funcionamento do Poder Legislativo.
Desta forma, assim como dentro do Poder Judiciário existem as turmas e câmaras, as comissões representam o elemento básico da organização dos trabalhos dentro do Parlamento.
Em segundo lugar, tem-se a demanda de especialização dos debates parlamentares. Ao serem criadas em função de áreas temáticas, as comissões permitem um debate mais abalizado das proposições legislativas. Considerando a grande quantidade de temas sob exame no Poder Legislativo de forma simultânea, seria impossível esperar de todos os parlamentares um conhecimento informado sobre todos assuntos.
Em regra, nas comissões são tratados os aspectos mais técnicos das proposições. Trata-se da mesma lógica que permeia alguns tribunais, como o STJ, em que se segmentam as competências das turmas por temas.
Nesse sentido, por exemplo, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados – RICD, em seu art. 32 traz a lista vigente das comissões especializadas e suas respectivas esferas de atuação: hoje são um total de 25 as comissões permanentes. No Regimento Interno do Senado Federal – RISF, tal lista figura no art. 72, contando com 13 comissões permanentes.
Tais números ensejam, por parte da literatura, a crítica de uma “excessiva especialização”, que pulverizaria a atuação parlamentar. Talvez de fato fosse o caso de encontrar o equilíbrio ideal, tanto do número de comissões, quanto da quantidade de seus membros. No entanto, ainda assim, o fato é que as comissões multiplicam a capacidade legislativa de debater temas simultaneamente.
Em terceiro lugar, a exigência de um locus para a participação popular. É nas comissões onde se pode garantir uma melhor “escuta ativa” das demandas sociais. Conforme expressamente prevê o art. 58, § 2º, incisos II, III, IV e V, da CF, as comissões podem: realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil; convocar ministros de Estado para prestar informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições; receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas; e solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão, sobretudo os expertos.
Sem dúvidas, o plenário não permitiria a realização ideal quanto ao nível de participação desejado, daí mais uma vez a importância desse sistema de descentralização funcional do Parlamento: as comissões são o locus por excelência da participação popular, que é tão importante para a construção de determinadas leis.
Em quarto lugar, tem-se o imperativo de informação, que se associa aos elementos participativo e de especialização que acabaram de ser mencionados, mas exige uma ênfase de modo separado. O art. 50, § 2º, da CF, autoriza as comissões a encaminhar pedidos escritos de informações a ministros de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República.
Assim, a estrutura das comissões possibilita a produção de informações (sobretudo de ordem fática) necessárias para uma decisão legislativa mais informada. A apreciação dessas informações pelo colegiado também tenderia a ser menos politizada (do que no plenário), embora não necessariamente isso garanta mais racionalidade. Além disso, as informações ficam armazenadas pelas equipes que compõem o corpo permanente de funcionários do Poder Legislativo (staff), o que traria mais continuidade ao fluxo dos trabalhos.
Em quinto lugar, tem-se a reivindicação de eficiência na atividade legislativa. Nesse sentido, pela primeira vez a atual CF delegou poderes legislativos plenos às comissões – na Constituição de 1946, art. 67, § 5º, incluído pela EC nº 17/65, chegou-se a prever essa possibilidade, mas por intermédio de delegação legislativa específica das Casas para cada caso, não de forma automática como ocorre desde 1988.
Assim, as comissões podem votar projetos de leis em caráter terminativo, isto é, dispensando a deliberação do plenário (seja para aprovar, seja para rejeitar as proposições). Conforme expressamente prevê o art. 58, § 2º, inciso I, da CF, as matérias votadas nas comissões em caráter terminativo somente vão a plenário se houver recurso de um décimo dos membros da Casa respectiva.
Embora essa “novidade” só tenha chegado aqui em 1988, o poder legislativo conclusivo das comissões já era empregado em outros Parlamentos mundo afora, como na Itália (art. 72.3 da Constituição de 1948) e na Espanha (art. 75.2 da Constituição de 1978). No entanto, até hoje, não é adotada no Reino Unido, nem na Alemanha, tampouco em outros países em que as comissões existem, mas não com poderes tão amplos como no sistema instituído nos EUA.
A lógica de que as comissões tenham poderes para votar projetos de leis em caráter conclusivo vem da necessidade de diminuir a sobrecarga do plenário dos Parlamentos. Um dos principais problemas dessa faculdade legislativa conclusiva das comissões, no entanto, está na definição de quais matérias ficam sujeitas a essa dispensa de aprovação por parte do plenário.
No RISF, tal lista está especificada no art. 91, que, além de prever hipóteses de tramitação terminativa obrigatória nas comissões, confere amplas margens para o presidente, ouvidos os líderes, submeter ao poder terminativo das comissões outras matérias, com exceção das proibidas (também expressamente listadas ali). No RICD, as matérias figuram no art. 24, inciso II. Neste último, usa-se a terminologia “apreciação conclusiva”, em lugar da expressão “caráter terminativo” empregada pelo RISF.
Nos dois regimentos, também foram previstas maneiras de retirar matérias (que seriam aprovadas em caráter terminativo) do âmbito das comissões. São basicamente três: 1) decurso do prazo de apreciação; 2) apensação a outra proposição (RISF, art. 258; RICD, art. 142); e 3) requerimento de urgência (RISF, art. 336, inciso III; RICD, art. 155).
Na primeira situação, o RICD, art. 52, § 6º, garante que, esgotados os prazos regimentais para o exame das proposições, o presidente da Câmara dos Deputados poderá, de ofício ou a requerimento de qualquer deputado, determinar o envio de proposição pendente de parecer à comissão seguinte (quando mais de uma for designada para apreciar a matéria) ou diretamente ao plenário. O RISF traz previsão semelhante no art. 255, inciso II, alínea c, item 5, c/c art. 119.
Assim, a qualquer tempo, independentemente da apresentação de razões, os membros das comissões podem ser substituídos pelos líderes, que têm esse poder estratégico para mudar a composição desses colegiados (RISF, arts. 80 e 81; RICD, art. 10, inciso VI, e art. 28).
Diante desses instrumentos que podem tirar parte do poder desses órgãos fracionários, alguns entendem que as comissões cumpririam papel meramente secundário no processo legislativo. Ainda assim, trata-se de um falso dilema o debate sobre o que é mais importante para o Poder Legislativo, se as comissões ou o plenário. Na verdade, não se pode prescindir de nenhum dos dois. Sem prejuízo do plenário, o fato é que as comissões ampliam as possibilidades de participação dos legisladores e da sociedade.
Além das considerações de ordem jurídica, institucional e quanto à eficiência dos trabalhos, é preciso registrar que as comissões também cumprem uma importante função de arena decisória dentro dos Parlamentos, de modo a equilibrar o exercício do poder, evitar abusos e abrir espaço para os processos de negociação política (logrolling). Funcionam como subsistema político, ainda que muitos dos acordos fechados nessa instância acabem não valendo na rodada do plenário.
Seja como for, na prática, os presidentes das comissões também têm poder de agenda, inclusive para barrar proposições (gatekeeping powers), e podem confrontar a atuação do presidente da Casa Legislativa e do próprio Poder Executivo. Podem funcionar como uma “pedra no sapato”. Por seu turno, como já comentado, as comissões igualmente ensejam margem à atuação política, dado o poder dos líderes em alterar sua composição, com impactos no resultado dos trabalhos do colegiado.
Com isso, vai-se notando o papel fundamental desempenhado pelas comissões, tanto para aprovar proposições dispensando a deliberação do plenário, quanto como rota obrigatória de passagem dos projetos de lei, como instância para debatê-los melhor e para a apresentação de emendas, sobretudo para “moldar” a deliberação do plenário quanto a determinados projetos de lei.
Após essa exposição, vê-se que a suspensão dos trabalhos das comissões durante a pandemia – que poderia parecer um detalhe singelo e justificado pelas circunstâncias – na verdade torna sem efeito uma previsão de ordem constitucional, o art. 58, caput, da CF, e ainda traz consequências para o rito de aprovação das leis e o jogo de poder político dentro das Casas Legislativas.
No caso do Senado, comissões de peso e grande influência no curso dos debates parlamentares – como a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) – deixaram de desempenhar seus papeis importantes nos conflitos legislativos.
Nem mesmo a virtualização da deliberação legislativa pela implantação do Sistema de Deliberação Remota (SDR), a tramitação sumária das medidas provisórias, a separação das sessões conjuntas do Congresso Nacional, a suspensão do trancamento da pauta deste último, as flexibilizações quanto ao quórum de votações – ou quaisquer outras modificações feitas no processo legislativo durante a pandemia – causam tanta diferença na deliberação quanto o não funcionamento das comissões.
Nesses meses em que as comissões não vêm funcionando, diversas matérias importantes foram aprovadas sem o debate aprofundado nesses órgãos colegiados, que funcionam como uma “primeira instância deliberativa”. Por exemplo: a que foi apelidada “PEC do Orçamento de Guerra”, resultante na EC nº 106/2020; o “Plano Mansueto”, que acabou sendo desfigurado e resultou na LC nº 173/2020, que concedeu o auxílio financeiro emergencial da União aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios para mitigar os efeitos da pandemia.
Mais recentemente, cite-se o Projeto de Lei Complementar – PLP nº 133, de 2020, que disciplina o pagamento das perdas de arrecadação provocadas pela aprovação da Lei Kandir (LC nº 87/1996), cujo assunto tinha sido objeto de acordo homologado no âmbito da ADO nº 25 junto ao STF.
Convém recordar que a falta das comissões já ensejou a inconstitucionalidade declarada na ADI nº 4.029, especificamente para as comissões mistas para analisar as medidas provisórias (art. 62, § 9º, da CF).
Após tal decisão do STF, com a obrigação de criar tais colegiados, muitas críticas vêm sendo dirigidas à ineficiência da atuação deles, sobretudo pelas razões já expostas acima: manejo estratégico da composição, “inutilidade” de alguns debates que são completamente alterados no plenário e inércia de um grande número de colegiados, que acabam simplesmente consumindo o tempo da tramitação sem efetivamente contribuir para o debate. O problema, no entanto, é mais uma vez das práticas constitucionais, não de desenho.
Agora que os parlamentares estão familiarizados com o SDR, o caso seria de reavaliação da decisão de suspensão dos órgãos fracionários, que poderiam funcionar também virtualmente ou mesmo de forma semipresencial, considerando a retomada de parte dos trabalhos nas dependências do Congresso Nacional.
Trata-se de usar o desenho institucional para dar um empurrãozinho no comportamento dos parlamentares. De modo geral, os ganhos advindos da especialização, dos debates nas comissões, e mesmo da politização, são muito superiores às perdas em termos de celeridade (ou suposta ineficiência) da tramitação.