Por Wellington Nunes e José Celso Cardoso Jr.
No dia 3 de setembro de 2020, o governo federal enviou ao Congresso Nacional uma proposta de reforma administrativa (a PEC 32/2020) sob a justificativa genérica de combater os privilégios do serviço público nacional. O argumento subjacente é que o setor público, por ter supostamente crescido de maneira descontrolada nas últimas décadas e possuir remunerações que imaginam exorbitantes, quando comparadas com as do setor privado, ocuparia cada vez mais espaço no orçamento, ameaçando a solvência fiscal do Estado.
O problema é que a equipe econômica não apresentou nenhum estudo técnico que pudesse conferir alguma sustentação empírica a esse argumento. Mais especificamente, não há um diagnóstico claro de onde estariam localizados os privilégios que o governo diz ter a intenção de combater. A PEC 32, aliás, embora tenha levado quase dois anos para ficar pronta, preserva o jeitão dos programas eleitorais de governo - construídos a toque de caixa, com o objetivo de apresentar um conjunto de intenções genéricas em períodos de campanha. Esse caráter impressionista tem ficado cada vez mais claro desde que a proposta foi enviada ao Congresso e pôde ser exposta ao escrutínio público.
Dessa forma, já se sabe que a pré-noção genérica de que o serviço público brasileiro seria uma espécie de oceano de privilégios é falacioso por pelo menos quatro razões.
Em primeiro lugar, o Atlas do Estado Brasileiro, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (lpea) e que reúne informações detalhadas sobre o setor público nacional, mostra que a evolução do número de vínculos, no período 1986-2017, ocorreu sobretudo nas esferas estadual e municipal, acompanhando a expansão da prestação de serviços (saúde, educação, assistência social, segurança pública etc.) à população. Em segundo, o emprego privado é dominante no país e cresce de maneira muito mais intensa do que o emprego público. Em terceiro lugar, não há crescimento acelerado das despesas em função do aumento do número de servidores: considerando o período 2006-2017, houve crescimento moderado das despesas com servidores civis da ativa nos três níveis federativos, em relação à evolução da receita corrente líquida, mas estabilidade dessa despesa como proporção do PIB.
Em síntese, as informações sumarizadas até aqui corroboram conclusões da terceira edição do Panorama das Administrações Públicas: América Latina e Caribe, um projeto conjunto da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), publicada em março de 2020. Duas constatações decorrentes das comparações internacionais são importantes: i) não há hipertrofia no setor público brasileiro, ou seja, o emprego público por aqui encontra-se em nível muito próximo à média dos países da ALC e bem abaixo da média dos países da OCDE; e ii) a taxa de crescimento do emprego público no Brasil na última década esteve entre as mais baixas do mundo, inclusive frente à média dos países da OCDE - que, por possuírem setores públicos mais robustos do que os dos países latino-americanos e caribenhos, tendem a ter uma taxa de crescimento mais lenta nesse quesito.
Finalmente, em quarto lugar, as discrepâncias entre as remunerações dos setores público e privado são muito menores do que sugerem comparações metodologicamente questionáveis, como as que se baseiam em médias gerais para os dois universos. Utilizando-se comparações mais adequadas, constata-se que: i) as remunerações do setor público nacional são muito heterogêneas e predominantemente baixas, ou equivalentes, quando comparadas às remunerações do setor privado; ii) as maiores discrepâncias em relação ao setor privado se concentram apenas entre os 10% mais bem pagos e nas carreiras jurídicas, de representação externa, tribunais de contas, atividades de fiscalização e nos altos escalões da administração presentes nos três poderes e Ministério Público; iii) se retirarmos da folha de pagamentos os profissionais da área jurídica do setor público, a diferença de rendimentos entre este e o setor privado cai de 13% para 4% apenas.
Diante disso, quem são e onde estão os privilégios de remuneração no serviço público federal? Um caminho bastante óbvio é identificar a quantidade e o impacto fiscal das remunerações que ultrapassam o teto legal para o funcionalismo público nacional - representado pelo salário-base dos ministros do Supremo Tribunal Federal (atualmente em R$ 39.293,32). Este valor, contudo, não leva em conta auxílios, gratificações, licenças remuneradas etc. (os chamados "penduricalhos"). Para contornar isso, o critério aqui utilizado foi o seguinte: foram considerados apenas os vínculos cuja média das remunerações mensais, no ano em questão, tenha sido superior à média da remuneração que um ministro do STF recebeu naquele ano, incluindo eventuais penduricalhos.
Para esse exercício, utilizamos uma base de dados produzida pelo Atlas do Estado Brasileiro a partir da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), que contém estatísticas relativas aos vínculos de trabalho ativos e permanentes no setor público federal civil brasileiro, nos três poderes, para os anos de 2000, 2005, 2010, 2015 e 2018. Com esse critério, a quantidade de vínculos com remuneração acima do teto funcionalismo público, ao contrário do que muitas vezes se imagina, está muito longe de ser exorbitante. Ao contrário, trata-se de um grupo bastante minoritário, mas ainda assim, uma verdadeira elite em termos salariais.
O gráfico 1 mostra a proporção de vínculos acima do teto, por poder da República – ou seja, estamos considerando a enorme diferença existente entre os três poderes em termos de vínculos absolutos. Como se nota, as maiores proporções observadas na série foram de 0,27% no Legislativo em 2010 e 0,27% no Judiciário em 2018; no caso do Executivo, a maior fração observada também ocorreu em 2018, mas na casa dos 0,17%. Em termos gerais, a proporção de vínculos acima do teto é maior no Legislativo e principalmente no Judiciário. Por outro lado, também é possível perceber que há um viés de alta desses supersalários ao longo do tempo: no Executivo desde 2010 e no Judiciário desde 2005.
Portanto, o que vai acima não deve confundir o leitor: não se trata de argumentar que a proporção de vínculos públicos federais com remuneração acima do teto do funcionalismo seja irrelevante; trata-se, sim, de dar ao fenômeno a relevância e o peso que ele de fato possui. Dito de outro modo, se o objetivo de uma eventual reforma administrativa for, de fato, combater privilégios, os supersalários do funcionalismo não podem ficar de fora - sob pena de a proposta do governo perder totalmente a credibilidade perante a opinião pública.
A fim de facilitar o trabalho do Ministério da Economia e do Congresso Nacional, é possível ajustar o foco da análise para identificar os órgãos, definidos com base na razão social dos empregadores, pelos quais estão distribuídos a elite salarial do funcionalismo público federal.
De maneira mais específica, é possível desagregar os dados do gráfico l pelos órgãos públicos aos quais pertencem os vínculos com supersalários. Isso feito, percebe-se muito claramente que, dentro de cada um dos poderes, há grande concentração dos vínculos com remuneração acima do teto, em alguns poucos órgãos da administração pública federal. Os gráficos 2, 3 e 4 mostram esses dados, por poder da República, para os anos de 2015 e 2018.
O resumo da ópera é o seguinte: a elite salarial do funcionalismo público federal é facilmente identificável, concentra-se principalmente no Ministério Público da União, Tribunais Regionais e Superiores, na Câmara dos Deputados, no Senado, no Tribunal de Contas da União e no Ministério das Relações Exteriores. Em outros termos, são procuradores, desembargadores, juízes, dirigentes do serviço público federal, deputados, senadores, diplomatas, ministros e secretários de ministérios - categorias profissionais que, como sabemos, várias delas não estão incluídas na proposta de reforma administrativa (PEC 32/2020) enviada ao Congresso. O que levanta muitas dúvidas sobre se governo e parlamento, de fato, têm interesse em atacar os privilégios do serviço público nacional.
Tudo somado, há sim que se promover mudanças no sentido da diminuição dos hiatos salariais entre setores público e privado, mas para tanto, dois objetivos devem ser perseguidos simultaneamente. De um lado, é fundamental recuperar e reativar uma perspectiva (governamental, empresarial e sindical) e políticas públicas de maior e melhor regulação e reestruturação dos mercados privados de trabalho, no sentido de se buscar menores taxas de desemprego e informalidade, assim como maiores taxas de produtividade e recomposição salarial, inscritas em trajetórias de recuperação do crescimento econômico em bases mais sustentáveis dos pontos de vista produtivo, ambiental e humano.
Por outro lado, é fundamental realizar ajustes remuneratórios no setor público, levando em consideração os determinantes e as especificidades presentes em cada nível federativo de governo (Federal, Estadual e Municipal), bem como atentando para as situações discrepantes em cada poder da União (Judiciário, Legislativo e Executivo). Por exemplo: a maioria dos problemas remuneratórios discrepantes poderia ser resolvido simplesmente aplicando-se, sem exceções, o teto remuneratório do setor público a cada nível da federação e poder da república. Além disso, é preciso eliminar ou diminuir drasticamente os adicionais de remuneração que muitas vezes se tornam permanentes em vários casos, distorcendo para cima os valores efetivamente pagos a uma minoria de servidores e funções privilegiadas.
Isso tudo para dizer que os problemas de remuneração, alardeados pela atual área econômica do governo por meio da grande mídia e base parlamentar, são a exceção e não a regra dentro do funcionalismo público, em qualquer recorte analítico que se queira utilizar.