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Reforma Administrativa Bolsonaro/Guedes: decifra-me ou te devoro!


Por: José Celso Cardoso Jr.
  13/08/2020



Após trinta anos de tentativas frustradas de implementação, com certo momento mais efusivo de contestação entre 2004 e 2014, estão de volta ao cenário nacional a ideologia do Estado mínimo e a reforma administrativa – negativista do Estado – que a acompanha.

Os detalhes específicos da reforma administrativa ainda não são totalmente conhecidos. No entanto, suas linhas mestras estão sendo explicitadas em uma série de entrevistas de autoridades, artigos de opinião e documentos oficiais ou oficiosos sobre o assunto. Sinteticamente, a nova orientação do RH do serviço público visa incrementar a produtividade por meio de estímulos individuais à concorrência no interior da máquina, e, ao mesmo tempo, combater supostos privilégios, tais como a estabilidade no cargo. Na prática, a reforma administrativa é condicionada pela ideologia do Estado mínimo e pelas políticas de austeridade centradas nos cortes de despesa que dificultam a retomada dos investimentos e do crescimento, desprotegem quem mais precisa dos serviços públicos de saúde, educação e assistência, e desorganizam – ao invés de aperfeiçoar – a administração governamental.

Partindo de visão ideologizada (vale dizer: pouco fundamentada seja na história brasileira ou das demais nações, seja nas teorias mais adequadas acerca desse objeto complexo e multidimensional) e negativa (vale dizer: preconceituosa e maledicente) acerca do peso e papel que o Estado deve ocupar e desempenhar em suas relações com os mundos econômico e social no país, os ideólogos e propagandistas dessa agenda ancoram seus dados e argumentos em conclusões infundadas e falaciosas, as quais supõem ser o Estado brasileiro: i) contrário aos interesses do mercado ou do capitalismo como modo de produção e acumulação dominante nas relações econômicas no país; ii) grande ou inchado em termos de pessoal ocupado e respectivo gasto total; iii) caro ou ineficiente em termos de desempenho institucional; iv) falido em termos de sua capacidade própria de financiamento e endividamento; e v) dependente das reformas da previdência, administrativa e microeconômicas para recuperar a confiança dos investidores privados, o crescimento e o emprego.[1]

A premissa liberal-fundamentalista afirma que o gasto público real seria a fonte de todos os males nacionais. Nada se fala sobre o gasto financeiro. Sob o mantra de que o Estado brasileiro gasta muito e gasta mal se esconde a razão de fundo e o objetivo último de toda e qualquer medida do atual governo desde o princípio. Apesar do discurso oficial, o fato é que são pífias ou inexistentes as preocupações com o desempenho governamental (setorial ou agregado) ou com a melhoria das condições de vida da população brasileira, esta, aliás, vista ou como inimigo interno ou como empecilho à acumulação de capital.

Agora, o debate corrente sobre a reforma administrativa tem um mérito e vários problemas. O mérito está em recolocar um tema de fato importante – para o próprio Estado brasileiro e sua população – no rol de prioridades governamentais. No entanto, infelizmente, isso tem sido feito sob influência de tantos problemas estruturais de compreensão teórica e histórica acerca do assunto, bem como de visão de mundo sobre a gênese, essência e funções do Estado nacional e dos servidores públicos na contemporaneidade, que vem praticamente anulando as possibilidades de diálogo e de avanço institucional a futuro.

Os documentos que atualmente abordam a ocupação, o desempenho e a produtividade no serviço público estão quase todos centrados numa visão fiscalista e gerencialista da atuação estatal. Por essa razão, fazem referência à suposta necessidade de reduzir salários e o número de servidores públicos em atuação (PECs nºs 186 e 188; MP 922/2020). Para tanto, os documentos defendem uma revisão das práticas de avaliação de desempenho com a finalidade principal de viabilizar a demissão de servidores públicos ativos, em especial os concursados e relativamente estáveis.

Em textos divulgados recentemente pelo governo federal e boa parte dos chamados “especialistas” que dominam as mídias e redes sociais, há menções a propostas de avaliação regular de desempenho dos servidores para identificar aqueles que “entregam tudo que lhes é demandado”, diferenciando-os daqueles que “não o fazem da forma ou no ritmo” necessários. As métricas para tanto utilizadas estão centradas, via de regra, em duas dimensões: i) na dimensão individual da atuação dos servidores, proveniente de critérios importados do setor privado; e ii) na dimensão da eficiência alocativa do gasto público, como se esta fosse a dimensão correta ou exclusiva de gestão e avaliação do desempenho no setor público.

Não por outra razão, a postura discursiva dos altos escalões do governo federal e o pacote de propostas legislativas em curso atualmente no Brasil, no que tange aos temas do Estado, suas organizações, instituições e servidores públicos concursados possui em comum a mesma sanha reducionista de preços e quantidades, persecutória contra organizações e pessoas não alinhadas ao mesmo ideário e práxis político-ideológica e criminalizadora da própria atuação governamental e de parte dos seus servidores (cf., por exemplo, a LRF/2000, a EC 95/2016, e as PECs 186, 187 e 188 que conformam o chamado Plano Mais Brasil).

Em suma: ao invés de trabalhar para elevar e homogeneizar o padrão de vida da população residente no país, o governo Bolsonaro/Guedes age para nivelar por baixo o padrão histórico brasileiro de condições e relações de trabalho, lançando também os trabalhadores do setor público ao patamar e práticas milenares da sociedade escravocrata nacional. Para não dizer que não há preocupação alguma com o Estado, suas organizações, funções e servidores, veja-se que tanto na reforma da previdência como nesse conjunto de PEC’s do Plano Mais Brasil, é conferido tratamento diferencial e privilegiado justamente ao núcleo militar-policial-repressivo do Estado. E assim se vai desenhando um estado de exceção no país, ao que se vão caindo submetidas as instituições, os poderes legislativo e judiciário, a grande mídia, a política, a economia e a própria sociedade (des)organizada, desde a destituição da Presidenta Dilma Rousseff em 2016.

Portanto, em função dessas e outras fraquezas e perigos das abordagens governamental e acadêmica dominantes, torna-se necessária uma melhor contextualização do problema como um todo, bem como uma revisão crítica acerca dos sentidos do desempenho no setor público, com indicações teóricas e práticas alternativas para requalificar o debate público e as perspectivas de implementação de reformas administrativas voltadas a ganhos de desempenho individual e institucional no âmbito estatal.

Em particular, é crucial que reformas ou modelos alternativos e mais promissores se projetem além dos modelos atuais baseados em metas quantitativas expressas em indicadores aparentemente simples, rápidos e fáceis de serem construídos, pois via de regra, escondem enormes problemas metodológicos e dificuldades de implementação ou de explicitação de dimensões realmente relevantes ao julgamento do desempenho individual e institucional em ambientes complexos e dinâmicos. Além disso, é crucial que tais modelos alternativos – que aqui serão chamados de modelos reflexivos da administração pública – possam medir a ação governamental de forma mais completa, qualitativa e sensível às variações de contextos, induzindo maiores impactos expressos nas transformações das condições de trabalho e produção, e das realidades sociais e econômicas, combinando produtividade e desempenho com aprendizado e inovação institucional constantes.

No Brasil, o regime jurídico dos servidores públicos civis (RJU) consiste em um conjunto de regras de direito público que trata dos meios de acessibilidade aos cargos públicos, da investidura em cargo efetivo e em comissão, das nomeações para funções de confiança, dos deveres e direitos dos servidores, da promoção e respectivos critérios, do sistema remuneratório, das penalidades e sua aplicação, do processo administrativo e da aposentadoria.

Desta feita, sendo o Estado o empregador em primeira instância, há obviamente a necessidade de que se cumpram todos os requisitos legais e morais mínimos à contratação e manutenção desses empregos sob sua custódia e gestão. Requisitos esses que dizem respeito, basicamente, às condições gerais de uso (jornada padrão), remuneração (vencimentos equânimes), proteção (saúde, segurança e seguridade nas fases ativa e pós-laboral), representação (sindicalização e demais direitos consagrados pela OIT) e acesso à justiça contra arbitrariedades porventura cometidas pelo Estado-empregador.

De outro lado, há distinções claras relativamente aos empregos do setor privado, dada a natureza pública dessas ocupações que se dão a mando do Estado e a serviço da coletividade, cujo objetivo último não é a produção de lucro, mas sim a produção de bem-estar social. Neste sentido, há pelo menos cinco fundamentos históricos da ocupação, também responsáveis, em última instância, pelo bom desempenho institucional agregado no setor público, presentes em maior ou menor medida nos Estados nacionais contemporâneos, que precisam ser levados em consideração para uma boa estrutura de governança e por incentivos corretos à produtividade e a um desempenho institucional satisfatório ao longo do tempo.

São eles: i) a estabilidade na ocupação, idealmente conquistada por critérios meritocráticos em ambiente geral de homogeneidade econômica, republicanismo político e democracia social, visando a proteção contra arbitrariedades – inclusive político-partidárias – cometidas pelo Estado-empregador; ii) remunerações adequadas e previsíveis ao longo do ciclo laboral; iii) qualificação elevada e capacitação permanente no âmbito das funções precípuas dos respectivos cargos e organizações; iv) cooperação – ao invés da competição – interpessoal e intra/inter organizações como critério de atuação e método primordial de trabalho no setor público; e v) liberdade de organização e autonomia de atuação sindical, no que tange tanto às formas de (auto)organização e funcionamento dessas entidades, como no que se refere às formas de representação, financiamento e prestação de contas junto aos próprios servidores e à sociedade de modo geral.

Desta maneira, o aumento de produtividade e a melhoria de desempenho institucional agregado do setor público será resultado desse trabalho custoso, mas necessário, de profissionalização da burocracia pública ao longo do tempo. Não há, portanto, choque de gestão ou reforma liberal que superem ou substituam o acima indicado. Por isso, uma verdadeira política nacional de recursos humanos no setor público deve ser capaz de promover e incentivar a profissionalização da burocracia pública a partir do conceito de ciclo laboral no setor público, o qual envolve as seguintes etapas interligadas: i) seleção; ii) capacitação; iii) alocação; iv) remuneração; v) progressão; vi) aposentação.

Ademais, deve atentar para os fatores que realmente garantem ganhos de produtividade e de desempenho institucional no setor público: i) ambiente de trabalho; ii) incentivos não pecuniários e técnicas organizacionais; iii) trilhas de capacitação permanente; iv) critérios para avaliação e progressão funcional; v) remuneração adequada e previsível; vi) estabilidade e critérios justos para demissão; vii) condições de realização dinâmica e retroalimentação sistêmica entre as dimensões citadas.

Este é o escopo necessário para uma discussão qualificada acerca da ocupação, da produtividade e do desempenho institucional do Estado brasileiro no século XXI. Pois bem, devido ao escopo e complexidade de cada um dos temas aqui levantados, esse espaço dedicará atenção específica a alguns deles ao longo das próximas edições.

[1] Para uma contestação plena relativa a cada uma das falácias listadas abaixo, ver os livros: i) Mitos Liberais acerca do Estado Brasileiro e Bases para um Serviço Público de Qualidade. Brasília: Afipea-Sindical, 2019; e ii) Desmonte do Estado e Subdesenvolvimento: riscos e desafios para as organizações e as políticas públicas federais. Brasília: ARCA (Articulação de Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável), 2019.

 

*José Celso Cardoso Jr., Doutor em Desenvolvimento pelo IE-Unicamp, desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e professor dos Mestrados Profissionais em Políticas Públicas e Desenvolvimento (IPEA) e Governança e Desenvolvimento (ENAP).





    

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