Estadão*
Nesta quadra desoladora da vida nacional, em que a terra brasílis bem-aventurada se converteu em imenso necrotério, e a desesperança invadiu mentes e corações, exauridos diante da inépcia e da truculência, fardada ou não, ecoam funestas as palavras do precursor do realismo fantástico: “Hacía tantos años que no alzaba la cara, que me olvidé del cielo. Y aunque lo hubiera hecho, ¿qué habría ganado? El cielo está tan alto, y mis ojos tan sin mirada, que vivía contenta con saber dónde quedaba la tierra” (Pedro Páramo, Juan Rulfo).
Terá sido episódica a esperança de um Brasil mais justo e solidário? De uma economia desenvolvida, que reduzia pobreza e desigualdades? De um país altivo, com voz no cenário internacional? De uma sociedade livre e inclusiva, que exorcizava preconceitos e discriminações? De uma juventude que cruzava fronteiras, ávida por conhecimento e por um futuro digno?
Bastou pouco para perdermos o rumo. Dia a dia são atacados os fundamentos do Estado democrático de direito. São tão frequentes as agressões às instituições republicanas, à moralidade pública, ao meio ambiente e aos princípios da dignidade da pessoa humana insculpidos na Constituição Federal – e à própria Constituição – que hoje damos graças tão somente por pisarmos em terra firme, vale dizer, por estarmos vivos e podermos respirar.
Nesse contexto de terra devastada – pela doença, pela regressão produtiva e pelo retorno ao mapa da fome –, não é difícil perceber a inversão de prioridades na (des)ordem política nacional. A insanidade do governo Bolsonaro fez do Brasil o pior país do mundo na gestão da pandemia. Mas é um erro esperar razoabilidade da demência. Então a reforma administrativa aparece como panaceia dos problemas da nação.
Esta, em essência, representa a destruição do aparato estatal público que estava em árdua – mas profícua – construção no país desde a CF-1988. Da PEC-32 não se aproveita nada em termos dos verdadeiros requisitos necessários à melhoria do desempenho institucional agregado do setor público brasileiro. Trata-se de uma proposta de natureza e intenções antirrepublicanas, antidemocráticas e contrárias ao desenvolvimento nacional, cujos fundamentos e implicações estão bem documentados em dois livros recém-publicados: i)Rumo ao Estado Necessário: críticas à proposta de governo para a reforma administrativa e alternativas para um Brasil republicano, democrático e desenvolvido (Fonacate, 2021); e ii)Reforma Administrativa Bolsonaro/Guedes: autoritarismo, fiscalismo, privatismo (Afipea-Sindical e Arca, 2021).
Do ponto de vista propositivo, em ambos os livros, a nossa proposta consiste em reativar 3 ideias-forças, a saber:
- O desenvolvimento nacional como carro-chefe da ação do Estado, ou seja, o Estado não existe para si próprio, mas como veículo para o desenvolvimento da nação. Nesse sentido, fortalecer as dimensões do planejamento estratégico público, da gestão participativa e do controle social – estratégias essas de organização e funcionamento do Estado – é fundamental para que possamos dar um salto de qualidade ainda no século XXI no Brasil.
- A necessidade de uma reforma do Estado de natureza republicana, que traga mais transparência aos processos decisórios, no trato da coisa pública de modo geral, redirecionando a ação governamental para as necessidades vitais e universais da população.
- A revalorização da política e da democracia: não há como fazer uma mudança dessa envergadura sem a participação bem informada da maioria da população. A democracia não é apenas um valor em si, mas também um método de governo, por meio do qual as vontades da maioria da população se manifestam, eleitoral e periodicamente. Mas também, para além da democracia representativa em crise, há elementos de uma democracia participativa – e mesmo deliberativa – que pressionam por mais e melhores espaços de existência e funcionamento.
Para lutar por um Estado moderno e serviços públicos de qualidade no Brasil, é preciso ter claro que em todas as experiências internacionais exitosas de desenvolvimento, é possível constatar o papel fundamental do ente estatal como produtor direto, indutor e regulador das atividades econômicas para que essas cumpram, além dos seus objetivos microeconômicos precípuos, objetivos macroeconômicos de inovação e inclusão produtiva e de elevação e homogeneização social das condições de vida da população residente em território nacional.
Em direção oposta, com a proposta de reforma administrativa Bolsonaro/Guedes, o governo age para nivelar por baixo o padrão histórico brasileiro de condições e relações de trabalho, lançando também os trabalhadores do setor público ao patamar e práticas milenares da sociedade escravocrata nacional.
Aqui, não se dão conta de que o tal aumento de produtividade e a melhoria de desempenho institucional agregado do setor público será resultado, na verdade, de um trabalho longo e custoso, mas necessário, de profissionalização da burocracia pública ao longo do tempo. Não há, portanto, choque de gestão ou reforma liberal – menos ainda esta, de natureza autoritária, fiscalista e privatista – que superem ou substituam o acima indicado.
Diante de tais circunstâncias, ambas as publicações mencionadas acima cumprem papel fundamental nesse debate enviesado, ao desconstruir as falácias que os detratores do funcionalismo repetem à exaustão, mas, sobretudo, por tratar do tema com a responsabilidade que ele exige, com espírito público, sensibilidade social e rigor científico.
No Brasil, o novo coronavírus e o governo Bolsonaro deixarão um rastro de destruição sem precedentes. E o fortalecimento e a qualificação do serviço público serão condições indispensáveis para que o país retome sua caminhada civilizatória, para que nossa gente volte a olhar para o céu e, quem sabe, até mesmo sorrir.
*Artigo do coordenador da Comissão de Estudos do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate) e presidente da Afipea, José Celso Cardoso Jr, e do presidente do Fonacate, Rudinei Marques.