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OPINIÃO

Reforma administrativa e assédio institucional no setor público brasileiro

  02/07/2021



Congresso em Foco*

Pouca gente notou, mas há uma correlação imensa entre a reforma trabalhista, embutida na PEC 32/2020 e propagandeada como inovação na gestão de recursos humanos no setor público brasileiro, e o fenômeno do assédio institucional. Por esta razão, se aprovada, essa reforma administrativa vai constitucionalizar o assédio institucional como método de governo.

Entendido desta maneira, há três movimentos discursivos por meio dos quais se opera o assédio institucional na prática: i) um liberalismo econômico radical, que preconiza a desconstrução das instituições públicas e acusa a ineficiência e o corporativismo da administração em nome do discurso da austeridade fiscal; ii) a desconstrução deliberada das institucionalidades e das organizações públicas por embaralhamento, por meio de duas características: a redistribuição, fragmentação e ressignificação de competências institucionais; e a administração das instituições por atores que lhes são oponentes ou que têm valores antagônicos a elas; e iii) a gramática da política como guerra híbrida contra o inimigo, a qual se caracteriza por uma lógica baseada na ideia de que a política se move pela presença de amigos e inimigos, sendo que os últimos devem ser isolados, derrotados e sua reputação (ou seja, sua legitimidade) destruída.

Casos recentes como os que já acometeram servidores do Ibama, da Polícia Federal, do Cade, do Ministério da Saúde, e tanto outros casos, vão se tornar a regra no setor público, com o agravante de que não vão mais contar nem com a estabilidade funcional nos respectivos cargos públicos, nem tampouco com o anteparo sindical ou da justiça do trabalho, já que todas essas institucionalidades são alvos do projeto destrutivo do governo Bolsonaro/Guedes.

A PEC 32/2020 prevê o fim do RJU para novos ingressantes, com o que, na prática, todos os atuais servidores passarão a pertencer a cargos e carreiras em extinção. Desta feita, a estabilidade estaria preservada apenas àqueles novos funcionários que ingressarem nos chamados cargos típicos de Estado, os quais tampouco estão definidos na PEC, reforçando a ideia de que esse conceito já está, em si mesmo, ultrapassado. Afinal, o que seria mais típico de Estado no atual contexto pandêmico que as carreiras das áreas de saúde, assistência social, educação e meio-ambiente?

Ao propor a extinção do RJU, criam-se quatro outras formas de contração, a saber: contrato de experiência; contrato por prazo determinado; vínculo por prazo indeterminado sem estabilidade; cargo de liderança e assessoramento. Com isso, a reforma amplia as possibilidades de contratação temporária, precarizando os processos de seleção/demissão e inviabilizando, na prática, trilhas de capacitação e profissionalização da burocracia pública. Fica claro o intuito de ampliar o uso de contratos temporários de forma irrestrita (PEC 32, Art. 39-A) e fazer com que funções de confiança e cargos em comissão, doravante renomeados para cargos de liderança e assessoramento, possam ser exercidos integralmente por não servidores (PEC 32, Art. 37), revertendo, neste particular, processo até então em curso de profissionalização no que tange à ocupação desses cargos de livre provimento, já que a maior parte dos mesmos deveria ser ocupado apenas por servidores estáveis em cada caso concreto.


Desta forma, com o fim da estabilidade funcional dos servidores, exacerbar-se-ão problemas notórios de assédio moral, sexual e institucional contra funcionários(as) e organizações, riscos de fragmentação e descontinuidade das políticas públicas de caráter permanente, além de aumento da incerteza da população e dos empresários com relação à qualidade, tempestividade e cobertura social e territorial das entregas de bens e serviços por parte do Estado.

É neste sentido que classificamos o assédio institucional como fenômeno novo e perturbador no cenário corrente, a ser exacerbado caso a PEC 32/2020 seja aprovada. Ele possui uma vertente organizacional e outra moral, mas em ambos os casos, trata-se da forma dominante de relacionamento entre distintas instâncias ou organizações hierárquicas em cada poder da União e nível da federação. E dentro de cada poder e nível federativo ou organizacional, entre chefias e subordinados, caracterizando, neste caso, o fenômeno típico do assédio moral, que obviamente não é exclusividade do setor público.Desta forma, com o fim da estabilidade funcional dos servidores, exacerbar-se-ão problemas notórios de assédio moral, sexual e institucional contra funcionários(as) e organizações, riscos de fragmentação e descontinuidade das políticas públicas de caráter permanente, além de aumento da incerteza da população e dos empresários com relação à qualidade, tempestividade e cobertura social e territorial das entregas de bens e serviços por parte do Estado.

Com relação ao assédio moral tradicional (individual ou coletivo), este pode ser considerado uma prática originária e comum no setor privado, uma pressão (vale dizer: uma exploração) dos modelos organizacionais hierárquicos em busca por desempenho e produtividade máximos no ambiente de trabalho.

A concorrência interpessoal, levada ao extremo pela ameaça permanente do desemprego ou do rebaixamento salarial, e a pressão por maiores indicadores de rentabilidade empresarial, são os principais motivadores desse tipo de assédio no setor privado.

No setor público, o assédio institucional de expressão moral também se caracteriza por ameaças físicas e psicológicas, cerceamentos, constrangimentos, desautorizações, desqualificações e perseguições, geralmente observadas entre chefes e subordinados (mas não só!) nas estruturas hierárquicas de determinadas organizações públicas (e privadas), redundando em diversas formas de adoecimento pessoal, perda de capacidade laboral e, portanto, mau desempenho profissional no âmbito das respectivas funções públicas.

Por sua vez, o assédio institucional de natureza organizacional caracteriza-se por um conjunto de discursos, falas e posicionamentos públicos, bem como imposições normativas e práticas administrativas, realizado ou emanado, direta ou indiretamente, por dirigentes e gestores públicos localizados em posições hierárquicas superiores.

Esta prática implica em recorrentes ameaças, cerceamentos, constrangimentos, desautorizações, desqualificações e deslegitimações acerca de determinadas organizações públicas e suas missões institucionais e funções precípuas. Alguns exemplos de assédio organizacional são eloquentes contra Universidades e Institutos Federais, Anvisa, Ancine, Bndes, Cnpq, Capes, Finep, Fiocruz, Funai, Ibge, Ibama, Icmbio, Inpe, Inep e Ipea.

Até mesmo contra organizações e carreiras do chamado núcleo administrativo de Estado, representado pelo Fonacate (Fórum Nacional Permanente das Carreiras Típicas de Estado), tais como: Fiscalização Agropecuária, Tributária e das Relações de Trabalho; Arrecadação, Finanças e Controle; Gestão Pública; Comércio Exterior; Segurança Pública; Diplomacia; Advocacia Pública; Defensoria Pública; Regulação; Política Monetária; Inteligência de Estado; Pesquisa Aplicada, Planejamento e Orçamento Federal; Magistratura e o Ministério Público. Tais evidências reforçam a tese de que o que está em jogo é também o apagar de memórias e a recontagem da história oficial segundo a visão de mundo ora instalada no poder.

Para ser justo, é preciso dizer que o assédio institucional sempre existiu dentro do setor público, mas ganhou escala, método e funcionalidade inusitada com o advento do governo Bolsonaro. É neste sentido que ele pode ser considerado um método de governo, cuja escala ampliada de situações – vide Assediometro – Arca Desenvolvimento Sustentável – demonstra que o fenômeno deixou de ser algo esporádico ou acidental, como no passado, para se tornar algo patológico, uma prática intencional com objetivos claramente definidos, a saber: i) desorganizar – para reorientar pelo e para o mercado – a atuação estatal; ii) deslegitimar as políticas públicas sob a égide da CF-1988; e iii) por fim, mas não menos importante, desqualificar os próprios servidores públicos, mormente os estatutários, sob guarida do RJU criado na CF-1988.

Enquadram-se também nessa categoria sociológica e jurídica, as reiteradas, infelizes e preconceituosas declarações do próprio Presidente da República e alguns dos seus principais Ministros. Como exemplo, destaquem-se as ilações acerca dos supostos “parasitismo” e “esquerdismo” inerentes aos servidores públicos, que são funcionários sob comando do Estado, mas a serviço da sociedade brasileira, incluindo os próprios detratores. Esses ataques repetem-se de forma sistemática desde o início do governo Bolsonaro, e visam claramente criar um clima de animosidade da população e dos financiadores e avalistas deste governo contra os servidores, de modo a facilitar a imposição, obviamente não negociada, de uma reforma administrativa autoritária, fiscalista e privatista, em suma, criminalizadora da própria ação estatal.

Ocorre que as propostas expressas na PEC 32/2020 e que visam reduzir gastos correntes por meio da quebra da estabilidade funcional para fins de demissão, forjando para baixo as remunerações dos atuais servidores e os futuros salários de entrada das novas contratações, possuem teor altamente questionável. Não apenas porque são medidas sem fundamentação técnica razoável, como porque serão ineficazes para se obter ajuste fiscal estrutural nas contas públicas.

Os custos econômicos, sociais, ambientais, políticos e institucionais de uma reforma administrativa que falsamente se vende como solução, serão muito maiores que a alegada economia fiscal dela derivada. Linhas gerais, as ideias que circulam mal escondem o viés ideológico, negativista do Estado e persecutório contra servidores, que está por detrás da péssima tecnicidade jurídica de pretensões administrativas, passando longe de qualquer proposta crível de melhoria efetiva do desempenho estatal no Brasil.

*Texto do presidente da Afipea, José Celso Cardoso Jr., e do técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA, Frederico A. Barbosa da Silva.





    

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