Conjur*
Reformas administrativas — em maior ou menor extensão, com este ou com outro nome — são tentadas ou realizadas há tempos, inclusive no Brasil. É difícil discutir reforma administrativa sendo servidor público, pois antes de qualquer consideração é preciso demonstrar que não se está querendo permitir ou manter qualquer privilégio.
Superada essa dificuldade inicial, é possível perceber que as regras da PEC 32/20 relativas aos diferentes vínculos jurídicos para o exercício das funções públicas não trazem inovações voltadas à melhoria de desempenho do setor estatal. A proposta de reforma não possui amparo em qualquer concepção de Estado e de Administração Pública, ao contrário da reforma gerencial dos anos 90. Evidências empíricas, estudos detalhados, objetivos e estratégias para alcançá-los, cenários e efeitos esperados — se existem — não foram apresentados para conhecimento e debate. A despeito da concordância geral de que é preciso avançar na busca de melhoria da performance da Administração Pública para que as promessas trazidas pela Constituição Federal possam se tornar realidade, a PEC 32 parece nos deixar mais perto de retroceder do que de caminhar para frente.
As diversas propostas relativas à restrição de vantagens remuneratórias, por exemplo, possuem claro objetivo de contribuir para diminuição de gastos, sem relação direta com melhoria de desempenho. Ainda assim, possuirão efeito prático relativo, sendo "normas placebo", na correta percepção de Paulo Modesto: "chovem no molhado e proíbem o que já está proibido e, ainda mais, proíbem em plano geral e permitem no varejo das únicas situações em que elas ocorrem". No propósito de conter os gastos públicos, "a PEC 32/2020 apresenta diversos efeitos com impactos fiscais adversos, tais como aumento da corrupção, facilitação da captura do Estado por agentes privados e redução da eficiência do setor público em virtude da desestruturação das organizações. Por sua vez, os efeitos previstos de redução de despesas são limitados, especialmente no caso da União".
Exemplo interessante de que a PEC 32/20 não contém regras verdadeiramente voltadas ao incremento de performance do setor público — assim entendidas aquelas que objetivam criar condições para desempenho eficiente, impessoal, eficaz e efetivo na criação e execução de políticas públicas e serviços públicos — reside na alteração do regime jurídico dos cargos em comissão.
A disciplina constitucional dos cargos em comissão e funções de confiança é, aparentemente, singela: à exceção de algumas menções envolvendo regime remuneratório, o regime jurídico constitucional se limita ao texto constate do inciso V do artigo37 (cuja redação atual foi conferida pela EC nº 19/98):
"artigo37 [...] V — as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento".
A leitura do texto permite extrair regra principal: só podem ser criados cargos em comissão quando suas atribuições exijam um vínculo de confiança entre seus ocupantes e aqueles que os nomeiam, para exercício de atividades de direção, chefia e assessoramento. Claramente se percebe a existência de uma limitação material (natureza das atribuições) e de outra limitação intersubjetiva (vínculo de confiança, não aferível por concurso público). A jurisprudência do STF, em interpretação sistemática, aprofundou a limitação intersubjetiva proibindo o nepotismo (por intermédio da Súmula Vinculante nº 13) e identificou necessário parâmetro de proporcionalidade (sendo necessário "que o número de cargos comissionados criados guarde proporcionalidade com a necessidade que eles visam suprir e com o número de servidores ocupantes de cargos efetivos no ente federativo que os institui)".
Uma breve pesquisa na jurisprudência do STF utilizando-se como argumento de pesquisa a expressão "cargos em comissão" é capaz de afastar a aparente simplicidade do regime jurídico-constitucional. Mais do que isso, uma pequena amostra do que se encontra nessa pesquisa é capaz de assustar quem imagina compreender o alcance dos princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública: a) no Estado do Tocantins foram criados 28.098 cargos em comissão para o exercício de atribuições técnicas e operacionais; b) em Goiás, lei Estadual excepcionava o nepotismo ao permitir a admissão ou a permanência de até dois parentes de autoridades em cargos em comissão; c) já foram criados, dentre muitos outros, cargos em comissão de Oficial de Justiça e Oficial de Secretaria e ainda cargos de perito médico-psiquiátrico, perito médico-clínico, auditor de controle interno, produtor jornalístico, repórter fotográfico, perito psicológico, enfermeiro e motorista de representação.
A PEC 32 propõe novo regime jurídico constitucional para os cargos em comissão, transformando-os em "cargos de liderança e assessoramento", "destinados às atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas" (redação proposta para o inciso V do artigo 37). As expressões direção, chefia e assessoramento são vagas, mas doutrina e jurisprudência têm sedimentado trabalho árduo de densificação e esclarecimento de seus contornos conceituais. Na redação proposta para o artigo39, lei complementar federal disporá sobre normas gerais de ocupação de cargos de liderança e assessoramento (inciso III); sem excluir a competência suplementar dos entes federativos (§1º). Para evitar delongas, "até que seja editada a lei complementar de que trata o caput, os entes federativos exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades" (artigo39, §1º-A). Finalmente, caberá ao chefe de cada poder dispor "sobre os critérios mínimos de acesso aos cargos de liderança e assessoramento a que se refere o inciso V do caput e sobre a sua exoneração" (redação proposta para o artigo37, §18º).
A regra proposta aparenta enrijecer o regime dos cargos em comissão (por meio da previsão de uma norma geral nacional, em lei complementar), mas flexibiliza como nunca a disciplina infraconstitucional ao remeter aos chefes do Executivo, Legislativo e Judiciário a competência para disporem, unilateralmente, sobre os critérios mínimos para acesso aos cargos.
Nada não está tão ruim que não possa ser piorado: a proposta abrirá as portas (ou comportas) para a criação dos tais cargos de liderança e assessoramento de acordo com os critérios particulares de cada chefe de poder. Difícil imaginar maior retrocesso na profissionalização da gestão pública, notadamente em uma Administração Pública que resiste a abandonar os embalos do sonho patrimonialista após quase 132 anos de proclamação da República. Se parecia fácil compreender o alcance das regras atuais, não é difícil imaginar o que ocorrerá com a aprovação das alterações propostas.
*Artigo do conselheiro e professor, Fabrício Motta.