O Globo*
Hoje, o presidente pode nomear seis mil pessoas que não fazem parte do setor público para os cargos em comissão. Com a reforma administrativa, poderá nomear 90 mil. Pessoas estranhas ao serviço público poderão exercer funções estratégicas. O governo poderá pagar o salário de funcionários de empresa privada. Tudo isso para economizar recursos? Não. No próprio texto da exposição de motivos está dito que não haverá impacto fiscal, orçamentário ou financeiro. A reforma administrativa é mais uma das propostas do governo Bolsonaro que serve a seu projeto de poder que, todos sabemos, é autoritário.
O mercado financeiro espera “as reformas” como um fetiche, afirmando que com elas o país retomará o crescimento e vai estabilizar a dívida pública. Balela. A MP da venda da Eletrobras virou um monstrengo, que custará caro ao consumidor por vários anos, mas tanto para o ministro da Economia, Paulo Guedes, quanto para o mercado financeiro, isso não importa. O ministro quer reduzir um pouco o fiasco que é o seu programa de privatização, e o mercado quer ganhar dinheiro com a operação.
Rudinei Marques, presidente do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado, explica a mágica da multiplicação dos cargos que poderão ser ocupados por decisão única do governante de ocasião:
— A PEC permite um aparelhamento sem precedentes do Estado. Através do que eles chamam de “vínculos de liderança”. Hoje a Constituição diz que na administração pública há funções de confiança específica de servidores de carreira e cargos em comissão que podem ser ocupados por pessoas sem vínculos com a administração pública dentro de limites fixados pela lei. Hoje, a União tem 90 mil desses cargos, 70 mil são funções de confiança exercidas exclusivamente por servidores de carreira e os outros 20 mil são cargos em comissão. Desses, seis mil são livre provimento, e 14 mil devem ser ocupados por servidores. Os vínculos de liderança eliminam qualquer restrição a que todos esses cargos sejam de livre indicação política. Então estamos falando de um exército de 90 mil cabos eleitorais.
Esses números são só da União, mas a mesma regra valerá para o Legislativo, o Ministério Público, o Judiciário. E pode, em cascata, ir para estados e municípios. A reforma é em todos os poderes.
Quando o Coaf foi punido, lembra Rudinei, por ter feito o seu trabalho de revelar as “rachadinhas”, foi preciso a atuação dos funcionários para evitar que os cargos na instituição fossem preenchidos por pessoas que não eram servidores de carreira.
Pedro Pontual, que representa a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, diz que a PEC permite que sejam transferidos recursos públicos para empresas privadas com fins lucrativos:
— Ela cria um instrumento de cooperação que autoriza pagar os recursos humanos das empresas privadas e também o uso de espaços físicos, fora da figura do aluguel. A PEC não coloca nenhum tipo de restrição a pagar salário a quem já estava na empresa. Isso pode servir para mascarar o gasto de pessoal.
Rodrigo Spada, presidente da Federação Brasileira de Associações Fiscais de Tributos Estaduais, alerta que a reforma não propõe algo realmente novo que poderia produzir um salto de eficiência no Estado:
— Essa PEC nada entrega de governo digital, capacitação, qualificação do servidor público, criação de escolas de governo, desburocratização.
Luciana Dytz, presidente da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais, diz que há mudanças necessárias, mas não estão sendo propostas:
— A gente vem sofrendo com falta de estrutura, mas isso é questão fora da reforma administrativa.
Há vários outros pontos controversos, explicam servidores, ou pontos que parecem avanços e embutem armadilhas. A exposição de motivos, que acompanha a PEC, diz que o “Estado custa muito e entrega pouco”.
— O governo se esmerou em mostrar o custo — do qual divergimos — mas não houve qualquer esforço para mostrar que entrega pouco. Temos noção de que o serviço público pode ser melhorado, mas dizer que “entrega pouco” é suficiente apenas na mesa de bar — diz Pontual.
Este governo atacou órgãos, desmontou a máquina, nomeou inimigos da missão de cada setor. Imagine o que faria sem as amarras da Constituição.
*Texto de Miriam Leitão.