Marc Fazer login
PEC 443

A PEC 443 E O RECONHECIMENTO DA ADVOCACIA PÚBLICA COMO FUNÇÃO ESSENCIAL À JUSTIÇA




A constitucionalização da Advocacia Pública foi o marco simbólico de uma virada histórica na concepção clássica da defesa do interesse público titularizado pelo Estado. O constituinte originário incluiu a Advocacia-Geral da União de entre as “funções essenciais da Justiça” (art. 131) e, com a Reforma Administrativa (Emenda Constitucional no 19, de 1998), a expressão “Advocacia Pública” foi devidamente constitucionalizada.

Mais que uma evolução normativa, esse processo refletiu uma sensível transformação sociológica nesse plexo orgânico, que é tão antigo quanto a própria formação do Brasil, a partir da herança administrativa do Império Português do Ultramar. Esse câmbio é perceptível, com maior intensidade, desde a década de 1990. Quem viveu nesse período o universo acadêmico ou o quotidiano forense, tem a recordação de professores em sala-de-aula usando os membros dos órgãos de procuratura judicial do Estado como exemplo de profissionais destituídos de padrões éticos, dados a chicanas processuais, autênticos prolongamentos da odiosa atuação governantes insensíveis, capazes de bloquear ativos financeiros de pobres viúvas, não pagar vantagens remuneratórias a desvalidos servidores públicos e impedir que honestos credores recebess em o que lhes era devido por um velhaco contumaz, que se materializava na União, nos Estados, no Distrito Federal ou nos Municípios.

À exceção de algumas Procuradorias de Estado melhor organizadas e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, os demais órgãos da Advocacia Pública eram tolhidos por condições vexatórias de trabalho, remunerações indignas e, mais que tudo, a ojeriza social, a hostilidade dos cidadãos, em um paradoxo kafkiano. A prova mais eloquente do desinteresse em aparelhar e tornar eficazes as instituições encarregadas da procuratura do interesse estatal é a passagem de cinco anos para que a lei orgânica da Advocacia-Geral da União fosse submetida ao Congresso Nacional e finalmente aprovada, apesar de sua criação no texto constitucional de 1988.[1]  

Os tempos mudaram. A corajosa atuação dos pioneiros da Advocacia Pública pós-1988 fez com que seus órgãos saíssem da postura defensiva e agissem como verdadeiros escritórios de advocacia, em busca do melhor resultado para seu “cliente”, o Estado e o povo brasileiro. Sem qualquer constrangimento, assumiu-se o discurso de que a defesa do Estado é a defesa do interesse do povo. Cada liminar indevida cassada, todo pagamento exagerado suspenso e cada política pública viabilizada era uma vitória na construção de um novo País, fundado nas sólidas bases da Democracia e do Estado de Direito.

Posteriormente, uma geração de novos titulares da procuratura do interesse público assumiu a dianteira desse processo. Novos procedimentos, autoestima elevada e coragem para ocupar espaços anteriormente reservados a atores tradicionais, converteram-se na tônica da Advocacia Pública na primeira década do século XXI. Do abandono da passividade judiciária, com a entrega de memoriais e a participação ativa nos julgamentos, chegou-se à valorização (ainda incompleta) da atividade consultiva, ao desempenho consciente do controle de legalidade dos atos administrativos e à presença concreta no processo de elaboração das normas.

Em 2009, o combate à corrupção torna-se pauta fundamental da Advocacia Pública. A partir do exemplo da Advocacia-Geral da União, que instituiu órgão especializado na recuperação e no ressarcimento de ativos e valores desviados por efeito da improbidade administrativa, a Advocacia de Estado ultrapassa uma das mais importantes fronteiras institucionais (e históricas). Ela sinaliza com a possibilidade de reparação eficaz – a econômico-financeira – dos desmandos administrativos. O divórcio entre a visão social distorcida da Advocacia Pública como uma serviçal silenciosa de alguns agentes políticos e de sua vocação para a defesa do Estado, acima de interesses circunstanciais, tem seu marco fundamental.

Falta, porém, algo essencial nesse processo iniciado em 1988, com a Constituição Federal, e impulsionado em 1998, com a Emenda no 19. Em termos formais, a Advocacia Pública nasceu “função essencial da Justiça”. Ocorre, no entanto, que essa qualificação jurídica necessitou de vinte anos para que se transmudasse em uma qualificação material. Seus membros, nos três níveis federativos, construíram, por meio de uma luta muitas vezes inglória e anônima, os vórtices dessa nova função essencial da Justiça.

E o que falta para que se ultime esse processo de transformação da Advocacia Pública?

O capítulo constitucional das “funções essenciais à Justiça” possui duas graves deficiências, que se exteriorizam pelo tratamento assimétrico, discriminatório e incompatível entre os órgãos ali materialmente sediados.

A primeira deficiência, que melhor seria qualificada como uma omissão, está em se deixar de fora do rol de procuraturas constitucionais os órgãos correspondentes dos Municípios brasileiros. A natureza peculiar da federação brasileira, que nela fez incluir os entes municipais, choca-se com a referência excludente de suas procuradorias nesse importante capítulo do texto constitucional.

A segunda deficiência, e essa é a mais grave, está na atribuição das garantias constitucionais da magistratura, no que couber, a apenas uma das funções essenciais da Justiça. Esse tratamento desigual, que tem na diferenciação remuneratória um de seus aspectos mais visíveis, é injustificável sob qualquer fundamento ou pretexto. A não ser que existam funções essenciais que não sejam tão essenciais assim. A não ser que seja verdade o célebre sétimo mandamento dos bichos, em “Animal Farm”, de George Orwell, segundo o qual todos são iguais, porém, alguns são mais iguais que os outros.

É para iniciar a correção dessa notória falta de harmonia interna do texto constitucional e, mais que tudo, fazer a necessária correspondência orgânica e funcional entre carreiras de idêntica conformação técnica, que o Deputado Federal Bonifácio de Andrada apresentou ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional no 443 (PEC 443).

A PEC 443 vincula os subsídios dos membros das procuraturas constitucionais ao teto remuneratório das respectivas entidades federativas, além de estabelecer essa correspondência para os integrantes das procuradorias jurídicas dos Municípios. A alteração é singela. Circunscreve-se essencialmente ao inciso XI do art. 37, CF/1988. Mas é o ponto de partida para a corrigenda histórica do incoerente tratamento das funções essenciais à Justiça na Constituição de 1988.

A iniciativa do Deputado Bonifácio de Andrada, de Minas Gerais, tem por si, além dos méritos acima destacados, a força moral do autor da propositura. O parlamentar associa seu nome, cujas origens estão entrelaçadas no nascimento do Brasil como nação soberana, com o papel decisivo do Patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada, à causa de uma das mais importantes, antigas e tradicionais instituições brasileiras, a Advocacia Pública. A ele juntou-se o Deputado Mauro Benevides, do Ceará, cuja trajetória de uma vida heróica dedicada ao restabelecimento das liberdades políticas no Brasil, é o penhor da seriedade e do comprometimento da Advocacia Pública com a causa do Estado Democrático de Direito.  

O conteúdo normativo da PEC 443 é contextualizado com um processo histórico especifico. Em mais de quinze Estados brasileiros, a consciência da dignidade da Advocacia Pública já se encontra devidamente normatizada, seja no plano constitucional, seja no plano legal, com a fixação de parâmetros remuneratórios vinculados às autoridades máximas de cada unidade. Esse estado de harmonia com a natureza das diferentes funções essenciais à Justiça surgiu de modo tópico por contingências ligadas à intensa atuação associativa nacional e local, bem como à sensibilidade dos Governadores e das Assembleias Legislativas. Agora, é chegado o momento da uniformização desse louvável avanço no âmbito da Constituição Federal.

A Advocacia Pública não deseja favores. Não luta por meros ajustes remuneratórios ou conquistas transitórias de direitos. O momento histórico, passados 20 anos de sua re-construção em bases constitucionais, é maduro para a introdução das mudanças contidas na PEC 443, início de uma nova fase na História das instituições que a integram, cuja culminância será o estabelecimento de um quadro normativo comum (e pleno) às funções essenciais à Justiça.

 

Otavio Luiz Rodrigues Junior – Advogado da União. Pós-Doutorando em Direito Constitucional (Universidade Clássica de Lisboa). Doutor em Direito Civil – Universidade de São Paulo.

Mauro Luciano Hauschild – Procurador Federal. Ex-Diretor da Escola da Advocacia-Geral da União. Especialista em Direito Constitucional – Instituto Brasiliense de Direito Público.

Lucilene Rodrigues Santos – Procuradora da Fazenda Nacional.

Ronald Bicca – Procurador do Estado de Goiás. Presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Estado.  
 





    

© ANPPREV 2025 - Associação Nacional dos Procuradores e Advogados Públicos Federais

Endereço:  SAUS 06 Bloco K - Ed. Belvedere - Grupo IV, Brasília/DF, CEP 700.70-915
Telefones: 61 3322-0170 | 0800 648 1038

Fazer login | Seja um(a) Associado(a)


Inatto