- A defesa judicial do Poder Público em demandas promovidas por servidores é invariavelmente fonte de incompreensões sobre os papéis da Administração e da Advocacia Pública.
- Boa parte dos pedidos dos servidores deriva de pretensões de extensão benefícios ou vantagens que a lei só prevê expressamente para um grupo específico, verificadas certas e determinadas situações concretas, ao argumento da isonomia. Outras demandas centram-se em decisões judiciárias dos tribunais superiores que vieram a reconhecer direitos em prol de servidores em situações assemelhadas. Nesses casos, deplora-se a atitude conservadora da Administração Pública, pouco dada a voos interpretativos, e reclama-se de uma suposta má vontade contra os servidores, em narrativas por vezes persecutórias.
- Em geral esquece-se de que, para Administração Pública, por força de mandamento constitucional expresso, o princípio da legalidade tem especial relevância. Consagrada no caput do art. 37 da Constituição, a legalidade tem ao menos duas facetas básicas. De um lado, protege o cidadão ou o servidor contra atos do Estado que não estejam previamente embasados numa deliberação democrática (lei ou emenda constitucional, por exemplo), e, de outro lado, protege o próprio Estado e o corpo político por extensão contra pretensões de cidadãos ou servidores que igualmente não guardam amparo numa deliberação democrática.
- Não é incomum que servidores, por seus causídicos, repitam máximas legalistas do tipo “a Administração só pode fazer o que está autorizada por lei”, mas consideradas outras circunstâncias concretas, esperam contraditoriamente que a Administração faça o que não está contido nem implicitamente na lei. Assim, não raramente, postulam – com razão — que a Administração tenha uma postura estritamente legalista quando em debate uma posição de vantagem dela frente ao servidor, mas quando em questão certas posições de vantagem dos servidores contra a Administração, abrem mão do legalismo e apelam para o senso comum, argumentos morais, políticos ou econômicos.
- Devido à força da legalidade para o atuar da Administração, os advogados públicos costumam partir do princípio de que a Ciência Jurídica não é só lógica. Não é uma lógica natural, abstrata e apriorística, deduzível do mundo inefável das ideias por meio da reta razão de privilegiados. É uma lógica que se forma a partir do concreto, acessível à generalidade da sociedade, considerando as escolhas políticas positivadas derivadas do arbítrio legítimo do legislador/poder constituinte. Esse é o ponto de vista habitual da Administração e dos advogados públicos do consultivo e do contencioso. Esses, mais do que advogados privados, magistrados, defensores e membros do ministério público, tendem a se manter mais fiéis à obra do legislador, ainda que, particularmente, possam a entendê-la como imperfeita, não se lhes aplicando a permissão prevista no inciso VI do art. 34 da Lei º 8.906, de 1994, de se advogar contra disposição literal de lei, “quando fundamentado em inconstitucionalidade, na injustiça da lei ou em pronunciamento judicial anterior”, conforme sugeri em artigo publicado:
“[...] no âmbito da Administração Pública, devem ser absolutamente desinfluentes concepções particulares dos administradores e dos advogados públicos acerca do acerto ou desacerto da obra do legislador, ainda que inspirados em elegantes juízos de adequação constitucional, sobretudo quando não se tenha notícia de que haja o Supremo Tribunal Federal exercido controle concentrado de constitucionalidade. Desse modo, advogar contra literal disposição de lei, ainda que fundamentado em eventual inconstitucionalidade, constitui para o advogado público no consultivo uma das mais graves violações de seus deveres perante o Poder Público, não se lhe aplicando a escusa do inciso VI do art. 34 do Estatuto da Ordem.”
- Nas controvérsias entre servidores e o Poder Público, é preciso considerar também que, diversamente dos demais atores jurídicos, a Administração Pública está submetida a diversos órgãos de controle capazes de imputar graves sanções jurídicas a seus agentes pela malversação de recursos do Erário, ao argumento, por exemplo, de que determinado benefício dado administrativamente com base na “isonomia” ou de outro princípio constitucional não encontraria previsão legal específica.
- É certo que se entende no Brasil que todo órgão do Poder Judiciário pode exercer controle de constitucionalidade ao analisar as causas concretas. Trata-se do que se chama de “controle de difuso de constitucionalidade”, mas esse instituto não é reconhecido à Administração Pública, que se encontra mais intensamente amarrada, por força de norma constitucional expressa, à legalidade.
- E considerando que a Constituição brasileira consagra a separação de poderes, deveríamos, em verdade, ser bastante críticos com relação a posturas doutrinárias que sugerem à Administração Pública uma automática submissão ao entendimento prevalecente nesse ou naquele tribunal, para além, evidentemente, dos limites objetivos e subjetivos dos casos concretos decididos. Ora, se é certo que no Brasil os poderes são independentes e harmônicos entre si, toda interferência na Administração Pública pela via judiciária deve ser constitucionalmente autorizada.
- Não se desconsidera que a Administração encontra-se também vinculada às decisões definitivas de mérito do Supremo Tribunal Federal (STF) nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade, tendo em vista que a Constituição assim o determina expressamente em seu art. 102, § 2º, fruto das Emendas nº 3, de 17 de março de 1993, e 45 de, 30 de dezembro de 2004. Trata-se de uma espécie de exceção à legalidade consagrada no art. 37 da Constituição, que decorre não de algo como a lógica das coisas ou de uma espécie de direito natural, mas de uma decisão política consubstanciada num texto de emenda constitucional.
- Mas não é só. A Súmula Vinculante, introduzida no ordenamento jurídico por força da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, talvez seja o exemplo mais perfeito de exceção à legalidade como vetor da atuação da Administração.
- Fora dessas hipóteses particulares constantes de texto expresso constitucional – as decisões definitivas de mérito do STF em controle concentrado de constitucionalidade e a Súmula Vinculante – é a legalidade que continua ainda hoje determinando o modo de agir da Administração Pública, e refletindo no atuar dos advogados públicos, e não o entendimento desse ou daquele Tribunal, nesse ou naquele caso concreto, e tampouco a vontade ou pendores particulares dos agentes públicos . Em verdade, à míngua de previsão constitucional, nem mesmo as decisões do STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em sede de julgamento de recursos extraordinários e especiais repetitivos vinculam necessariamente a Administração Pública. Evidentemente, o entendimento dos tribunais não é um nada. Pelo contrário, para além de incidir sobre os casos concretos efetivamente julgados, serve como uma grande força propulsora de mudanças legislativas, e justifica, dentro dos limites do poder regulamentar, que venha a Administração a adotar outras posturas e a aprovar novos regulamentos mais consentâneos com o entendimento dos tribunais. Mas, como se disse, para a Administração Pública, para além da lei e seus correspondentes regulamentos, só é fonte formal imediata de direito as decisões do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade e a Súmula Vinculante.
- Então, por mais difícil que seja para o profissional que advoga para servidores compreender, a resistência aos pleitos dos servidores não é um dado revelador de sadismo, insensibilidade ou de má vontade da Administração ou dos advogados públicos, mas apenas uma postura metodológica específica, cuja dignidade precisa ser reconhecida, assim como devemos reconhecer a dignidade das posturas de advogados especializados em direito do consumidor, direito do trabalho, e direito penal, por exemplo. Afinal, cada profissional da área jurídica, na medida em que se especializa, tende a centrar suas atenções em aspectos peculiares do ordenamento, sejam as normas de proteção do acusado (para o advogado penalista), sejam as normas de proteção ao trabalhador (para o advogado trabalhista) ou sejam as normas de proteção ao consumidor (para o advogado consumerista), por exemplo.
- Assim, a propósito de uma mesma situação jurídica, há que se ver como natural que a Administração e os advogados públicos ostentem um entendimento mais comedido e mais circunscrito aos termos da lei e menos favorável a servidores, e que os advogados privados e eventualmente os tribunais possam ter um entendimento diverso, menos preso à lei, e mais ligado a outros princípios constitucionais para além da legalidade. O fundamental é que esses pontos de vista diferentes coloquem-se ao debate público em contraditório, num ambiente livre de acusações recíprocas e de teorias persecutórias. Só assim conseguiremos construir um ambiente jurídico saudável e funcional.
*Pablo Bezerra Luciano é Procurador do Banco Central do Brasil desde 2011, com atuação na área contenciosa. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Foi representante suplente da carreira perante o Conselho Superior da Advocacia-Geral da União.