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OPINIÃO

Carreiras típicas de Estado: simples, e não simplório

  08/07/2021



Conjur*

A polêmica quanto à caracterização do que são "carreiras típicas de Estado" tem assumido intensa notoriedade ultimamente, com as discussões acerca da PEC 32/2020, que trata da chamada reforma administrativa. Longe de se buscar definição absoluta sobre essa questão, as presentes linhas propõem algum contraponto a certas visões simplistas externadas, muitas vezes dissonantes do que se pode extrair das próprias balizas que a Constituição Federal firma em relação ao Estado brasileiro.

Com efeito, certos agentes políticos, econômicos, setores da mídia etc. têm propugnado a tese de que "carreiras típicas de Estado" são aquelas que "não possuem correspondência na iniciativa privada". Trata-se de argumento reiterado. O risco é de que a mentira contada mil vezes vire verdade.

O fato é que pregações dessa natureza nitidamente influenciam-se mais por ideologia econômica e menos por critérios jurídicos aceitáveis. O objetivo é "reduzir o tamanho do Estado". E restringir o quanto possível o signo da expressão, encurtando-se as prerrogativas que a Constituição Federal — e a PEC 32/2020 — confere aos agentes públicos nela enquadrados. Estabilidade, impossibilidade de redução de jornada de trabalho e salário, limite de demissão por insuficiência de desempenho, entre outras situações, estão em jogo nessa discussão e a retórica ideológica é de "combater os privilégios", ou de "equiparar os agentes públicos aos trabalhadores da iniciativa privada".

No entanto, uma reforma administrativa, dada sua relevância e implicação para todos os brasileiros que dependem de serviços públicos de qualidade, não pode se construir através de guerra fratricida de discursos ideológicos, tampouco de batalhas inconsequentes entre corporações públicas e privadas.

É o regime jurídico administrativo, a ciência do Direito, a academia, a Constituição Federal e seus objetivos fundamentais e regime político que correspondem às pontes para se alcançar proximamente o que são, efetivamente, "carreiras típicas de Estado". Em última análise, é a própria moldura do Estado brasileiro, construída pela Carta de 88, que há de delimitar o conceito e alcance da expressão.

É preciso, então, nesse contexto, reconhecer que é uma contradição em termos buscar na similitude ou equiparação entre atribuições públicas e privadas a exegese da expressão "carreira típica de Estado". A atividade pública, independentemente da profissão de origem do agente público, é completamente diversa da atividade privada, é guiada por outros nortes, por outros princípios, por outros objetivos. O Direito Administrativo se diferencia do Direito Privado. O agente público somente pode fazer, limitadamente, o que a lei determina (poder/dever), já o agente privado pode realizar tudo o que a lei não proíbe (princípio ontológico do Direito). A margem de atuação do agente privado é ampla. O controle de atuação do agente público há de ser onipresente (regime de responsabilidades). É necessário resgatar essas premissas científicas básicas (sim, científicas, porque advindas da ciência do Direito, do regime jurídico administrativo), para que o debate se realize nos termos corretos.

O agente de segurança privada protege alguém ou alguma coisa, mas não exerce a mesma atividade que o profissional da segurança pública. O professor do ensino privado ensina alguém, mas o educador público tem variadas atividades distintas em relação ao primeiro. O auditor ou contador da iniciativa privada audita contas, mas o auditor do serviço público audita contas ou fiscaliza de modo absolutamente distinto, pois as contas são públicas. O diplomata corporativo representa internacionalmente grandes corporações privadas, avalia e compreende cenários, negocia, cria acordos, minimiza conflitos, aplica estratégias traçadas por sua empresa, mas, certamente, a atuação do diplomata público, formado no Itamaraty, é diversa e complexa porque o interesse de um Estado não se compara a um interesse de corporação econômica ou multinacional. O advogado da iniciativa privada representa judicialmente, presta consultoria jurídica, mas o advogado público controla a constitucionalidade das leis, atos, contratos, formata juridicamente políticas públicas, é munido das informações mais sensíveis, estratégicas e sigilosas do Estado brasileiro em todos os seus órgãos e instituições, realiza o controle de legalidade dos atos da Administração Pública e até exerce o poder de império do Estado, constituindo unilateralmente um título executivo extrajudicial (a Certidão de Dívida Ativa). Exemplos outros há de monte.

Superficial e impróprio, portanto, buscar em suposta equiparação entre atividades públicas e privadas o conceito de carreira típica de Estado. Há um vício de origem no argumento. É contrário à ciência do Direito. É contrário à lógica, e aos princípios da não contradição e do terceiro excluído. Não há equiparação possível entre qualquer atividade privada e uma atividade pública.

E como a Constituição Federal, e o delineamento nela estabelecido para o Estado brasileiro, são os pontos de partida para se definir o que são carreiras típicas de Estado, pode-se concluir que, ao menos, essas últimas devem ter por missão, de algum modo, atuar para a defesa da soberania; da cidadania; da dignidade da pessoa humana; dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; do pluralismo político, ou para construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O atingimento de tais objetivos fundamentais do Estado brasileiro se faz por carreiras típicas desse mesmo Estado brasileiro. Muitas delas (independentemente de outras), inclusive, estão expressamente contempladas e mencionadas na própria Constituição Federal. E aqui se pode estabelecer esse norte apenas preambular: se a própria Constituição considera uma carreira ou instituição de tamanha relevância a ponto de contemplá-la destacadamente em seu texto, é inescapável considerar-se essa carreia ou instituição como "típica de Estado". A não ser que se entenda que Estado e Constituição estejam dissociados.

Logicamente, os agentes privados estão inseridos nesse contexto e contribuem para o alcance de tais objetivos essenciais do Estado. A participação privada, as parcerias e atuações conjuntas são elementos fundamentais resguardados pelo sistema constitucional, pois a liberdade e a prosperidade (econômica) são valores ressonantes num Estado democrático de Direito pautado por direitos e garantias fundamentais. Mas a busca legítima pelo lucro, como pauta prioritária dos agentes econômicos privados, placita a imprescindibilidade de agentes estatais, "típicos de Estado", como personagens inseparáveis do atingimento dos propósitos constitucionalmente preponderantes.

Assim sendo, caro leitor, o primeiro conselho para quem deseje um debate minimamente honesto e imparcial sobre o tema em foco é folhear a Carta da República e conhecer os objetivos fundamentais de nosso Estado. Já no índice da Constituição de 88 há uma indicação. Isso já permitirá uma visão, ao menos inicial, de quais são as carreiras típicas do Estado brasileiro.

*Texto do procurador da Fazenda Nacional, Ricardo de Lima Souza Queiroz.





    

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